sexta-feira, junho 02, 2017

FRUTA E PEQUENO ALMOÇO - Armando Silva Carvalho


E chega a vez das frutas.
São elas que enobrecem a impureza dos dentes,
As cavidades ocultas,
Todo o oco do ouro exibido pelos pobres
Em tempos menos austeros, em pequenas rodas da fortuna
Que se traz na boca, um açaime com poder.

Sobre a mesa, olho ainda as maçãs no escuro de Clarice,
A outra, inaugural, vermelha, de Sophia, numa pausa em que a
Escrita
Pode ainda derrubar os cálices de ambrósia na cozinha,
E me põe a mastigar o sumo das sílabas
Solares.

Porque há sol sublime
E a manhã ainda é um nome, disse outra poetisa,
Surgindo em colação.

Oh, o sopesar das laranjas de infância, sugando até à casca.
O fabricar dessa música dourada
A plenos pulmões, engasgava-me de vida
Uma tonta criança de triciclo,
Tão só a pedalar com os gomos na garganta,
Abrindo pela solidão adentro uma estrada só de fruta,
Frágeis mãos ao volante, garoto alucinado,

Caminho divido, pela penumbra da sala, pela polpa da memória,
Mas escondo eu a faca que reparte,
E o gume agudo e bruto
A sede de justiça dos pomares, a balança infantil
Das mãos dos deuses?

Sentado penso melhor, a sofreguidão fez com que empurrasse o Dia para o sumo,
Apalpo agora o veludo do pêssego,
Ensino à língua o sabor do outono, a suave alquimia
Das frutas demoradas,
A melodia intrínseca, essa aliança de sabores e saliva,
Esse desfazer do eterno sob o céu rapidíssimo
Da boca.

Armando Silva Carvalho –
“A Sombra do Mar” – Assírio&Alvim – Março 2017


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