sábado, novembro 12, 2016

FRAGMENTOS XXXVII


Neste escarpado trilhar de pedras de Maria Adelaide em que seu pessoalíssimo itinerário de dor, tão íntimo e sofrido, se derrama, nenhum discurso narrativo poderá resistir à prova da verdade, nem autor, (se autor houvesse), que não se vergue e arrepie caminho. Deixemos pois respirar o tempo e o modo deste luto e guardemos silêncio de outros personagens, pois que, nem Tabanca, nem Alferes, nem a vaidade ofendida de Sanhá Mané, filho de Régulo e Comandante-Chefe de Todas as Milícias e Tropas Auxiliares do Comando Territorial da Tabanca, nem sequer o “senhor Gomes”, que na sábia palavra de Dona Rosalinda os pretos respeitam e os brancos escutam ou escutavam, antes desta maldita guerra ”meter tudo de pernas para o ar” têm agora ocasião ou momento no palco “a meia haste” da narrativa.

Apressemos, no entanto a marcha, quer dizer, o ritmo de dizer, pois que é de prever que muitos se enfastiem, como Maria Adelaide, com esta teima de acrescentar nada a coisa nenhuma, nesta narrativa redonda que tanto avança como recua e agora, na Tabanca, que não ata, nem desata, como viatura militar atolada na bolanha e o Alferes a debater-se entre a frustrada visita ao “senhor Gomes”, marinheiro e herói da fracassada Revolta dos Marinheiros de 1936, primeiro branco naquelas paragens e degredado, a pagar com os costados em longínquas e inóspitas partidas, o sonho e a ousadia de pretender, não tanto mudar o Mundo, mas singelamente apenas derrubar o fascismo e devolver dignidade à Pátria usurpada. E, no outro extremo da indecisão do Alferes, a pretensão de Sanhá Mané, filho de Régulo e Comandante-Chefe de Todas as Milícias e Tropas Auxiliares do Comando Territorial da Tabanca que, puxando dos galões de “alferes”, atravessados a vermelho nos ombros, não sobre briosa farda militar, que a sua dignidade lhe permitiria usar, mas tão só nas ombreiras do desabotoado casacão do camuflado e a cobrir-lhe a cabeça o tradicional barrete fula, bem coma a típica túnica branca dos “homens grandes”, presa entre pernas, uma espécie de “saia calça”, a tapar-lhe as partes baixas do corpo, figura grotesca e híbrida, portanto, uma “rebaldaria” a oscilar entre o façanhudo comandante da milícia e o viciado roedor do cola, a dedilhar contas de ébano e apascentar, com os outros “homens grandes”, “roncos” e vaidades, à sombra da enorme árvore, que tudo ouvia e tudo calava.

Calava a arvore, que não o Alferes. Que antes de inquirir ao que vinha, quis saber, antes de mais, em que qualidade vinha, pois que como Comandante das Milícias se teria de apresentar devidamente fardado, mas que ele, Alferes, oficial miliciano do Exército Português, com galões doirados, atravessados nas ombreiras de impecável farda, aceitaria escutá-lo na qualidade de filho do Régulo, mediante a condição de despir o que restava da vestimenta militar, bem como os galões de alferes que lhe adornavam os ombros. E o Alferes de galões doirados, herói provisório desta saga, usando da velha técnica de “numa mão o látego, noutra o bálsamo” convidou o “seu camarada de armas”, de segunda classe - está bom de ver - procurando assim evitar maiores danos nas sensíveis relações com os indígenas, a entrar na vivenda de Dona Rosalinda, que os mais atentos leitores sabem constituir, não apenas posto de comando militar, mas também caserna de outros bem mais dulcificados labores, (que não são agora para aqui chamados) e que o extenso leito e o ardente corpo da solícita inquilina, dona Rosalinda, permanentemente reclamavam.

E assim se passou. Sanhá Mané, filho de Régulo e Comandante-Chefe de Todas as Milícias e Tropas Auxiliares do Comando Territorial da Tabanca, falou algo em língua nativa ao seu “ajudante de campo”, um altivo fula em trajes tradicionais, que o acompanhava a uns carrancudos passos de distância e que, em passo de corrida, se perdeu no interior da tabanca, sendo que, face ao amistoso gesto, o Alferes de galões vermelhos, assentes na rebaldaria de meia farda e desabotoado casacão militar, seguiu lado a lado com o Alferes dos galões doirados e impecável farda, ambos em perfeito aprumo para o interior da vivenda, posto de comando do destacamento militar e caserna de outros dulcificados labores, que não vêm ao caso. E, já no interior da vivenda, seguindo o exemplo do Alferes, herói provisório desta saga, que na sala de comando se desembaraçou do casaco e dos galões doirados, também Sanhá Mané, filho de Régulo e Comandante-Chefe de Todas as Milícias e Tropas Auxiliares do Comando Territorial da Tabanca se desfez do seu mal engendrado casacão camuflado e seus vermelhos galões, tendo assim, um e outro, sido devolvidos à sua natural condição de paisanos, sentados lado a lado, aptos para as grandes decisões político-militares do Governo da Tabanca.

Ao que vinha, portanto, Sanhá Mané, agora que devidamente esclarecido, na subtileza dos símbolos militares o pequeno quid, o quase nada, que faz a diferença entre o chefe das milícias indígenas e a sua condição de paisano e negro, embora filho de Régulo, que nessa qualidade falou, num linguajar esdrúxulo, mescla de crioulo cabo-verdiano e coloridas expressões locais que o autor destas linhas, no tempo literário, em que se joga o sentido das coisas e personagens que (re)cria, admite que o Alferes, herói provisório desta narrativa, terá compreendido do longo exórdio de Sanhá Mané, filho de Régulo.

Reivindicava então do adventício Alferes miliciano, de galões doirados e provisório herói desta saga, não o comando do destacamento militar, que embora filho de Régulo e mais antigo no posto em que fora graduado teria direito, mas que bem sabia, a sua condição de indígena não lhe permitiria almejar, pois tropa de verdade é branca e tropa do seu comando serve apenas para fazer trabalho de negro, mas exigia, contudo, que as suas “tropas auxiliares” continuassem a fazer, pela manhã o hastear e ao fim da tarde o arriar da bandeira nacional, como sempre fora sob comando da unidade pelo Sargento Fernandes, antes das novas tropas chegarem e que tanta confusão vieram trazer. Dispensar as suas tropas indígenas de tal missão constituía uma afronta para toda a comunidade, que ele, Sanhá Mané, filho de Régulo, muito desejava fosse lavada, sem o que não poderia evitar que o Regulo, seu pai, e o seu Conselho de Anciãos tomassem o assunto como questão de governo da Tabanca e, neste alcance, o próprio Governador-geral fosse informado e chamado a intervir.

Bem sabia o Alferes de doirados galões, que não era credível que Sanhá Mané, filho de Régulo, que mal articulava um monossílabo na Língua de Camões, em sua atávica visão do Mundo pudesse idealizar tão elaborado sentido de amor pátrio e tão acrisolado apego à bandeira portuguesa e conhecedor, como era, do terreno minado que pisava e para o qual, maternamente, Dona Rosalinda o instruíra como sendo obra da mente diabólica do Antunes, agente da Pide de 1ª Classe, interrogou-se pois o Alferes, herói provisório desta saga, se para além da vaidade ofendida do seu interlocutor e sua reparação, Sanhá Mané não seria, inconsciente que fosse, veiculo de outras insídias, bem mais profundas que o “inocente” desejo de mostrar às suas gentes a importância de seu status, na arquitectura de poderes em vigor na Tabanca.

E então, filosoficamente o Alferes, para seus botões lançou a arguta pergunta de quanto vale uma bandeira? que sendo sempre a mesma, a mesma não era, porém, a Pátria que representava. Não era certamente a mesma Pátria, sendo a mesma bandeira, para o velho “senhor Gomes”, degredado da heróica e frustrada Revolta dos Marinheiros de 1936, primeiro branco daquelas paragens que na palavra de Dona Rosalinda os pretos respeitam e os brancos escutam ou escutavam, antes desta maldita guerra chegar e agora quase paralisado com a gangrena a roer-lhe as pernas e a Pátria do agente da Pide, por interposto Sanhá Mané, filho de  Régulo, ou do jovem universitário de cabeça a sangrar, apanhado na carga da polícia, no fervor da contestação estudantil à guerra colonial. Não, não era para todos eles a mesma Pátria, embora para todos eles fosse a mesma bandeira... 

E então, abrindo o sorriso, de orelha a orelha, o Alferes de doirados galões, agora, com seu “camarada de armas”, despromovido à condição de paisano, abre o peito e solta a pergunta para o atónito Sanhá Mané, que nada entende “quanto vale uma bandeira? Amanhã, sob nosso comando conjunto, as duas tropas prestarão, em única formação militar, honras à bandeira portuguesa!”
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E, talvez, um dia, num tempo outro, que não tempo literário, mas tempo do longo tempo dos Povos e da História, talvez Sanhá Mané, filho de Régulo, fique a conhecer quanto custa “ganhar uma bandeira!”

 Manuel Veiga


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