segunda-feira, setembro 07, 2015

FRAGMENTOS IX - Acumulação de Sinais


Assentemos que também não existe lugar a fixar as personagens num território que as proteja ou lhes molde as emoções ou lhes defina o percurso ou que, como herança de passos percorridos, delas faça alimento ou perda, ou inventário, ou sereno declive dos dias. O espaço é apenas arquétipo, registo de sinais contaminados pela erosão, linhas figurativas que se ligam e se religam e se demandam e se desmancham como fios invisíveis, na movimentação livre dos diversos tempos em que as personagens se derramam e as palavras ousam o(s) sentido(s) da escrita. Pois se lugar houvera, aquele seria o corpo consagrado da Derrota, inscrita na pele dos dias e das coisas, como todos os sinais permitiam profetizar.

A Tabanca, naquele tempo, era o “o fim do mundo”. E fora também local de degredo. Em cima da linha da fronteira, alargava-se em círculo, no interior da área continental, a leste da colónia, região que até final do século XIX, integrava o “reino de Gabu” que, da colónia portuguesa se estendia pelo território de Casamança, no Senegal e atingia a proximidade do território da Guiné Equatorial.

Linha de fronteira, portanto. No entanto, era sabido que as populações indígenas, mais do que por linhas de arbitrárias das fronteiras, traçadas pelo colonialismo europeu, se movimentavam livremente pelas respectivas áreas de domínio ascentral, sem considerações de “ordem burocrática” por fronteiras ou países.

As fissuras e divisões no interior da sociedade indígena eram, naquele tempo, determinadas, sobretudo, pelos despojos da história, quer dizer, pela matriz da guerra e da conquista que, no caso, se exprime em vagas sucessivas de ocupação por etnias provindas do norte e nordeste que empurraram as populações autóctones, ou há mais tempo estabelecidas, em direcção ao Atlântico, cerzindo assim o território em diversificado painel de etnias e “chãos”: os Bijagós, nas ilhas com o respectivo nome, os Balantas a sul, os Manjacos mais no centro, os Felupes, acantonados a nordeste junto ao Atlântico, os Mandigas e aos Fulas no centro-leste do território, entre outras etnias de menor expressão.

Com o desmembramento do reino de Gabu, em finais do século XIX, na sequência da guerra e prolongados conflitos entre Mandigas e Fulas, a etnia fula passou a ser dominante na região, empurrado os mandigas para as regiões periféricas.

Mandingas e Fulas, irmãos desavindos por qualquer capricho, não da história, que o “tempo da História” ali ainda não era então, apenas tempo recuado e lento em que o instinto de sobrevivência explode, como matriz de vitória e submissão, mandigas e fulas, dizíamos, eram oriundos da região do Mali e, mais ao norte da Mauritânia, povos invasores, portanto, arabizados, o que permitia atribuir-lhes pelo colonialismo português “ascendente cultural” sobre as restantes etnias. Seja como for, enquanto a sul, a guerrilha fervilhava e infligia pesadas derrotas ao exército colonial, a leste do território a guerrilha era ainda incipiente, impulsionada fundamentalmente pelos mandigas.

Era, assim, aquela zona de quadrícula militar ponto nevrálgico na estrutura de guerra e do evoluir das operações, em virtude da sua localização e, sobretudo, pela sua geografia humana e étnica, com a predominância e a dominância fula, que a tropa colonial iria procurar comprometer, perseguindo a sua cumplicidade activa com as forças coloniais ou, pelo menos, a sua neutralidade no conflito.

Pressinto o teu suspiro de enfado, Maria Adelaide, bem sabendo eu quanto te são fastidiosos os pormenores, que não sejam dulcificados pelos afectos em que a tua vida se move, onde não entram, por razões tão tuas, nem teatros de guerra, nem muito menos a convivência com fugidias classificações das etnias africanas. Negro é negro, acabou-se!... Assim era no leite que bebeste na infância e nos caprichos com zurzias a pachorrenta “nurse” que te criou e trouxeste para Lisboa, por capricho maior, quando em rebeldia, recusaste o internato nas Doroteias e teu querido Pai te instalou no apartamento da Avenida de Roma, com tua “mãe negra”, órfã de mãe branca que eras, a apaparicar-te e a supervisão de uns afastados parentes da província, que passaram a servir-te, ela como veladora do teu bem-estar e zelosa informadora das tuas tropelias de adolescente mimada, que, para mal dos pecados de teu pai, evoluíram, quando o seu tempo chegou, para uns normais pecadilhos da juventude tão ao jeito da época, e ele, guarda-republicano aposentado, guarda-costas e “chauffeur” em teus percursos diários para o Liceu Maria Amália.

Bem sei Maria Adelaide que seria mais prazeroso delinear a matriz, percorrer esse tempo, sem tempo ainda, de menina adolescente, seguir a pulsão de nossos afectos, antecipando o registo e o discurso dos dias que hão-de vir e a narrativa de um tempo amadurecido de nossos encontros e desencontros. Mas como o coração tem razões próprias, também as razões da escrita nos levam por caminhos travessos e rodeios, por vezes inesperados, na esperança de que, mais adiante, o cerzir das palavras ganhe expressividade e todos os sentidos sobrepostos sejam a linearidade do entendimento.

E então deves compreender que, neste destapar do “ruído da escrita”, a Tabanca que o acaso elegeu é apenas território utópico, uma ilha inventada, onde os fios se cruzam e outras personagens se irão desenhar e atravessar, em perdição ou glória, a língua de fogo, que separa a cinza ardida de coisa nenhuma, de que o nosso Alferes, em suas peripécias e vagas dissertações e em seu desajeitado voo demiúrgico, é compère e cúmplice.

Deixemos assim o Alferes a “narrar-se” na primeira pessoa e na acumulação sinais, que lhe tombam sobre a cabeça, reconhecer suas pesadas circunstâncias, dele e de milhares de jovens enfileirados à força e, na aprendizagem de si mesmo, nas suas perplexidades e nas dores e horrores da guerra, na erosão do tempo actual, aprender a amassar um tempo outro, futuro ainda não maduro, que um dia, não muitos anos depois, há-de explodir como flor vermelha em solo sedento de liberdade.


2 comentários:

Suzete Brainer disse...

Para mim é sublime, quando um poeta dos grandes tem
também a excelência na narrativa; as palavras agregam
a prosa poética e o sentido literário ganha uma
beleza única, construindo um caminho essencial para
evocar a emoção, a sedução e com a linguagem
enigmática da poesia proporciona o mistério do
caminho incomum, a originalidade...
Não consigo aceitar o suspiro de enfado
da Maria Adelaide...rsrs
Simplesmente magistral, Poeta amigo!
beijo.

Agostinho disse...

A narrativa feita, perfeita, de um poeta que traça a evolução que o vento traz a cada hora à fronteira. Não há muro nem barreira imutaveis. Nem no eu.

Parabéns.

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