segunda-feira, junho 29, 2015

FRAGMENTOS VI - Outras personagens no proscénio...



Não, não o Autor não existe. Nem o Sujeito tem história. Em certo sentido pode mesmo dizer-se que o sujeito “está fora da estória”, meteorito apenas, fugaz, deixando, quando é o caso, um rasto luminoso, outras vezes nem tanto, apenas colapso no interior do magna, evanescente, condenado à sofreguidão e à imprevisibilidade da palavra, que o atira para limbo das nocturnas excrescências. Descartáveis. Quando muito poderá ser “partenaire” que na encenação, se assume cajado apenas, artesão ou mestre, porta-voz ou palhaço, cerzindo os enredos da palavra e os caprichos das personagens, iludindo as sombras e aquietando a luz, como tule de ilusionista.  

Nem, em verdade, a narrativa tem Tempo. Mas antes confluência de tempos, artificio, linhas quebradas de um rosto, onde se configuram vários rostos, informes, distorcidos, desordenados, como se o caos da palavra buscasse uma passagem secreta, demiúrgica, uma ordem invisível, que uma vez iniciada logo se fundisse na imensidão de coisa nenhuma, como se acontecimentos, imagens, descrições, estados de alma ou ritos, em tropel de despenhassem num grito de luz branca e o sentido fosse apenas eco.

Apenas o leitor salva o texto, em sua glória ou colapso.

O capitão destacara-o, para o extremo nordeste do território, com o objectivo de fazer o levantamento das condições de instalação de toda a Companhia e, com o respectivo pelotão, reforçado com uma secção de engenharia, adaptar ou construir as infra-estruturas militares essenciais, ainda que precárias, que até então destinadas a uma simples secção de 15 homens, e que passariam a servir uma Companhia completa de mais de 120 militares.

Aquela zona de quadrícula estava ainda relativamente imune a acção da guerrilha, dizia-se. Mas as necessidades operacionais, decorrentes da nova estratégia introduzida pelo novel governador militar, determinaram que a até então pequena secção, comandada por um furriel miliciano e um pelotão de milícia indígena, comandada pelo filho do Régulo, fosse substituída por uma companhia operacional completa.

É assim que, depois de mais de ano e meio de constante intervenção, no teatro de operações, à ordem do Comando Chefe, a Companhia de Cavalaria, com os homens exaustos pela insistente intervenção militar nas operações de maior risco, pelos quilómetros percorridos, pelos tiros, pelas minas e pelas baixas, o Supremo Comando Militar da Província destinara-lhe aquele local recôndito, onde se as coisas corressem bem, a Companhia passaria o resto da comissão, apascentando patrulhamentos de rotina, em relativa acalmia.

Antes porém da transferência da companhia e depois de uma visita de reconhecimento pelo capitão, comandante da Companhia e de um oficial do comando da Batalhão, havia pois que com urgência realizar as obras necessárias. Missão árdua e com prazo limitado, mas que permitia ao Alferes uns dias de distanciamento da rotina asfixiante do quartel, entre as ginástica e a ordem unida, o rancho e a caserna, a chamada e o toque de recolher, a distribuição do correio como meses de atraso, “nós por todos bem”, o poker e o king, a farda nº1 todas as noites ao jantar com o comandante do batalhão, o celebrado “cuequinhas de renda”, assim designado na parada e na caserna, aquela conversa mole, como cerveja quente, a escorrer das bocas com o último bocejo na sala de oficiais.

Ansiava o Alferes por as leituras em dia, agora que o acaso o levara à descoberta, na diminuta livraria de Bissau, numa edição em francês do “Estrangeiro” de Marcel Camus e o almejado “Dannés de la Terre”, do argelino Franz Fanón, sobre a guerra da independência da Argélia, que em Lisboa corria então clandestino e de que ouvira falar com entusiasmo, mas nunca às mãos lhe chegara.

Aceitou por isso com bonomia o seu destino e a missão, bem sabendo ele que a uns bons quilómetros de distância, não teria interferências, nem dificuldades no comando do seu destacamento, cujos homens de uma maneira geral o estimavam e que o furriel Serrão, com um curso de construção civil pelo ISE, arcaria com a responsabilidade das obras, numa versão moderna e actualizada de um velho principio da arma de cavalaria que rezava ser “obrigatório o sargento saber ler e escrever, porquanto o oficial, por ser fidalgo, poderia não saber”.

"Fidalguias" e livros à parte, assim o Alferes se sentiu, administrando o comando dos seus homens à distância e as obras a cargo do sargento, deliciando-se em suas leituras subversivas e outros prazer do espírito.

Assim devera ser. E, no entanto...
         
Se lugar algum houvesse, aquele seria o Centro, o local do Crepúsculo, o palco de todas as celebrações, onde o Desastre se incendeia, como larva em corpo decrépito. E fora o autor outra coisa que não mero espectador e teríamos então a apoteose fogosa, a ilustração do Declínio, a Putrefacção rarefeita, a síntese da Decadência, como se “a coruja de Minerva”, (que dizem-me velhos alfarrábios comanda o cavalgar da História e que apenas canta ao anoitecer) em seu voo nocturno, de um golpe clarividência, iluminasse todos os fundamentos e razões, numa premonição de Apocalipse dos dias futuros da guerra e da iminente queda nos abismos da derrota.

E talvez outras personagens pudessem entrar em cena a representar o seu próprio papel, que dizer, o papel das suas ignoradas vidas, no interior do sistema colonial...

domingo, junho 28, 2015

TERMÓPILAS...


Honra seja àqueles que na sua vida
Definiram e guardam uma Termópilas.
Sem mover-se de seus deveres constantes:
Justos e rectos em todos os seus actos
Contudo com dó e compaixão.
Dadivosos quando são ricos e quando
São pobres também modicamente dadivosos
Também auxiliando quando puderem;
Sempre da verdade afirmantes,
Porém sem ódio para os fementidos.

E ainda mais honra lhe seja devida
Quando prevêem (e muitos prevêem)
Que Efialtés surdirá no fim
E os Medas finalmente passarão.

Konstandinos Kavafis – Poeta grego – 1863/1933
 “Os Poemas” – edição Relógio de Água – Julho 2005

quinta-feira, junho 25, 2015

A MEMÓRIA É UM IMENSO LAGO...


A memória é imenso lago que nos devolve o rosto
Transfigurado como a pedra a desfazer-se
Depois das casas morrerem...

Itinerário de cinza
A despenhar-se
Por dentro...

Garganta apinhada e celeiro talvez
A explodir em pio de ave
Ou fissura por onde
O fogo arde
Ainda...


Manuel Veiga

segunda-feira, junho 22, 2015

FRAGMENTOS V - Desejo que venhas, Maria Adelaide...


Desejo que venhas, Maria Adelaide, partilhar esta paleta indistinta de sentimentos, tão apta a desabrochar em fantasia de cor, como a fechar-se em teimosia de guardar pétalas. Como tantas vezes, dizendo-te, me digo, e aquilo que era apenas intuição ou vago desejo de nada e de tudo, se revela límpido em ti. O teu rosto e o teu sorriso, talvez uma breve carícia de teus olhos e a palavra ganha a tonalidade certa e sentido oculto, que os dedos decifram sobre as teclas. Quero, hoje, que sejas a matriz de tudo, já que por África enveredamos. Que eu te invente de novo. Que te recrie na doce lembrança dos primeiros tempos, esbatidos – ambos o sabemos – no devir das nossas vidas passadas. Na contabilização de nossos afectos, que não sendo nossos, nossos são, na divergência e desencontros das nossas vidas. A que ambos somos leais, mas não fiéis!...
                          
Confessaste-me, um dia, que te aproximaste de mim por curiosidade. Nunca tiveras por tão perto, em convívio diário, um comunista. De facto, em certo sentido, eu era um outsider. Nas minhas itinerâncias profissionais, acabara de retomar o lugar na Administração Pública. A geografia política mudara no País. Eram outros os tempos. O João, teu marido, ocupava lugar destacado num gabinete ministerial. E tu vieras da Escola onde exercias, porque te era mais confortável a Administração Central. A ti bastava seres a mulher de quem eras. Eu era (quase) um “pária”, um comunista, sabe-se lá se um perigoso “infiltrado”, um “vende pátrias”, em suma, pronto a entregar os altos desígnios da anódina Direcção Geral ao estrangeiro. O Director, em seu zelo apostólico-político, não me permitia, por isso, nem o mais insignificante papel para, ao menos formalmente, poder justificar o tempo e o vencimento. Nada, literalmente nada. E eu não me importava!... De forma que tu e eu tínhamos que queimar as horas e a monotonia. Devo confessar-te, porém, que me aproximei de ti pelo veludo de teus olhos. E em nome da “velha amizade” com teu marido. Sempre o João dissera, em conversas soltas da juventude, no grupo de férias na província, que um dia casaria, sim, mas seria com uma mulher rica. A curiosidade agora era minha. Quando te contei, mais tarde, sacudiste os cabelos numa gargalhada e vi os teus olhos toldarem-se. Ainda não éramos amantes. Depois eu soube. Tu contaste-me com lágrimas de amargura e raiva. Mas, então, ainda não. No entanto, ambos sabíamos, já de nossos corpos. Pressentíamo-nos na vibração, quando, a centímetros, escorríamos um pelo outro. Nas passagens, nas portas, no corredor. Quando, no elevador, repleto, buscávamos a proximidade. Ou quando, derretidas as inibições dos primeiros tempos, te sentavas, de pernas descuidadas, na minha secretaria.

E então quando, sobre a tela, passava o “Eclipse”, de Antonioni, a minha mão buscou a tua não houve surpresa. E quando a Mónica Vitti, tão frágil e desamparada, soltou o grito na brancura solar écran, as nossas bocas eram pasto, na obscuridade da sala. E quando saímos, a urgência era fome de ternura partilhada.

Merecemo-nos. Soubemos sorver até ao fim a beleza desse encontro...

Hoje evoco-te, Maria Adelaide, neste meu regresso a África, como se tu foras quando ainda não eras, porventura, alibi ou pretexto ou, por momentos, os nossos caminhos inversos fossem colisão de destinos, tu no furor da guerra colonial, em busca de refúgio em Lisboa, protegida pelo dinheiro da família e umas vagas aulas na Faculdade de Letras e eu subindo o escaler do Uíge, milhares de homens a bordo, debruçados na amurada, prolongando o choro das mães, o beijo das mulheres e das noivas, a serena revolta dos pais e dos amigos, o fadário de um Povo acorrentado, os restos crepusculares das “andanças e traficâncias” de um proclamado Império, que não do sonho do Quinto, pois que o Padre António Vieira não é para aqui chamado, mas da rançosa persistência colonial, ao arrepio da História e da vontade dos povos colonizados.

Pressinto o teu olhar no meu rosto e o teu sorriso irónico: - “Que fulgor e que arrebatamento, Manuel!... Vejo que ainda não estás curado do “bichinho” da política. E soltas uma gargalhada nervosa...

Eu sei que sim, eu sei que sim, Maria Adelaide. Sei por que caminhos te levam as minhas palavras. E tu sabes que nunca esquecerei a celebração “as minhas derrotas políticas”, aquela fórmula prodigiosa que tu, então dividida entre o apoio ao marido e o voto do coração, inventaste para mim, num momento da mais absoluta rendição e exaltação amorosa.

Mas, por enquanto, ainda África, Maria Adelaide...

Manuel Veiga


  

sábado, junho 20, 2015

CHE (Com a Grécia em Fundo...)


(...)
“É um poder que se tem.
Um terrível poder contagioso.
Por isso há tanta gente a policiar tanta gente
Para que não aconteça o inesperado
Para que ninguém resolva por exemplo
Chegar a uma janela e gritar
Eu sou o Che.

Porque a verdade é que pode ser.
Há uma possibilidade de Che em cada um.
Não claro está aquele olhar doce e triste
Nem o sorriso que exprimia uma inocência
Nem o modo inconfundível
De balançar os ombros quando andava
Quase como se
Dançasse.
Mas um outro lado da vida. Um outro sentido.
A partir de um centro
Situado em Ñancahuazú
Quer dizer: no coração.
(...)
A qualquer momento
Qualquer um
Pode dizer: eu sou Che
Ou mesmo sem o dizer pode partir.
Ou não partir. Mas de qualquer modo
Desaparecer.
Subir a uma montanha dentro de si
Criar um foco
Um centro de irradiação
Tanto pode ser uma guerrilha
Como um poema
Ou um silêncio. Ou até
Porque não
Um amor secreto.
Ou simplesmente uma recusa.

Algo diferente
Um gesto que provoque uma alteração de ritmo
Uma ruptura
(...)
Então é o Che
Uma estrela na testa
Uma insubmissão
Um foco.
Um grande coração a bater em Ñancahuazú
No centro do Mundo
Em parte nenhuma
Em toda a parte”. 

Manuel Alegre – poema CHE –Edição  Editorial Caminho




terça-feira, junho 16, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXVIII


Havia em Babilónia uma “Passarola”... Que voava, voava... E levava os babilónicos pelas sete partidas do Mundo!...

Um dia, o deus Mercado sussurrou ao ouvido de Hammurabi, o legislador, que, para sua glória, a Passarola devia ser vendida.

E assim foi feito - sem que ao menos os babilónicos saibam, ao certo, por quanto...

Hannibal, “o coiso”, solta um indecoroso “flatus” - e sente-se aliviado...

Pela Praça perpassa um odor fétido – muitos apertam o nariz...
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E um velho mestre-escola,  roendo-se de amargura: “Quale ingenium, talis oratio” (tal o carácter, tal o falar)...”

E citando o Poeta maior, exorta: Um fraco rei faz fraca a forte gente – babilónicos, defenestrem-no. Já!..."

segunda-feira, junho 15, 2015

FRAGMENTOS IV - O VALENTE VALENTIM...


Não, não existe autor. Nem soberania da palavra. Aquilo que é dito e o interdito confundem-se, sem remissão ou glória. De nada serve proferir um nome ou inventar um rosto. Apenas os silêncios são epifania. E, se autor existisse, assumiria então o comando da narrativa, ordenaria os farrapos da memória e o discurso fluiria incessante e cristalino. E o grau zero do inumano ganharia a expressão do absurdo. E a discursividade dos limites e do sofrimento seria uma palavra mordente, declinada em apóstrofe ou blasfémia. Mas não. A palavra fica presa nos liames e nas picadas e nas veredas lodosas e na profusão incessante daquelas águas chocas. O pavor e a raiva e a infinita solidão daquele calvário, as chagas dos pés e todas mazelas e todos os gritos de revolta se calcinaram, no rasgar do cansaço sobre os corpos como lâminas de desespero e na sufocante ansiedade de lhe apressar o fim. E embotaram toda energia e resistência. Apenas o cansaço poroso a invadir os sentidos, os olhos moles de sono a fecharem-se, o cachação do camarada que o pior seria adormecer e tombar no lodo, inerte, como morto, fora do tempo e do mundo, numa desistência de absoluto abandono. E a extensa fila de homens, qual centopeia de mil pernas, ligados, derreados, serpenteando a orla da “bolanha” num trilho de indígenas, enquanto a maré sobe e água negra de mil decomposições, fétida, arrastando detritos e todas as sínteses, como o caldo primordial de todos os acasos de vida, esqueletos, carapaças, jacarés apenas olhos seguindo a presa, algas venenosas, insectos, batráquios, vermes, minúsculos seres, quase invisíveis, filando-se na carne dorida como agulhas finas. Penosos os passos, presos no lodo e o sol derretendo-se no lombo, como bestas. E a água morna a tomar o percurso das pernas e das virilhas, a infiltra-se no corpo, a dobrar a cintura e atingir as axilas. E os homens de braços erguidos, como numa prece muda, ou castigo, de G3 sobre a cabeça, último reduto de identidade e de defesa.

Horas intermináveis, infindas, até ao dobrar da bolanha e arribar ao cais improvisado e aos fuzileiros amigos e às ronceiras LDMs, onde embarcariam provisoriamente seguros.  

Que sabes tu de África, Maria Adelaide? Filha de África te dizias: que sabes desses dias?...

Não, não te recrimino, nem – longe de mim – me arrogo em tua “consciência moral”. Sei bem que cada um de nós arrosta, inocentes e puros, a consequência dos nossos acasos e da vulnerabilidade das nossas vidas. Nem tu escolheste África como berço, nem eu demandei África, como destino de guerra.

Mas que queres? Hoje estou assim um pouco azedo. Estas evocações envenenam o sangue. E, como títeres de um teatro de fantoches, desfilam, enfim,” velhos conhecidos”. Vou soltá-los, permites?

Olá, Valentim, bem-vindo. Claro que estás morto. Estúpido o acidente que te ceifou a vida, a dois dias de regressarmos à “peluda”. Já contávamos até os dias por horas. Estúpido o despiste do Unimog, que se voltou esmagando-te o crânio, já no regresso à cidade, onde embarcaríamos depois de dois anos consecutivos de mato. É evidente que não tens direito a hino, nem a inspirado poema, nem a Cruz de Guerra, claro. Mas confesso-te que, quando a voz plangente de Adriano ecoa em “Canção com Lágrimas”, as fimbrias mais íntimas de mim próprio estremecem e acendo então o “meu no teu cigarro” como se fora ainda ontem a celebração dos garbosos alferes, subindo a trote a Calçada da Ajuda, rumo a Monsanto, em exercícios de equitação militar.

Como tu gostarias de nos ver, Maria Adelaide, assim brilhantes de solarina e “panache”...

E os dez contos recebidos como pré, semanas antes do embarque, depois de conhecido o destino? Era para comprar as fardas – ordenou o regimento - obrigatória a farda branca ultramarina e duas elegantes fardas de sair em castanho claro. Mas dez contos eram uma fortuna! Nem eu, nem tu tínhamos visto alguma vez tanto dinheiro na mão... Uma orgia, portanto! Sabíamos lá se voltávamos, ou se regressaríamos embalsamados em caixão de chumbo... E não houve bar, cabaré, prostíbulo ou puta de Lisboa (passe o exagero, que a capital é grande) que não frequentássemos.

E tivemos até o desplante de atrasar, por horas, a partida do Uíge, com todo o Batalhão embarcado, enquanto no Hospital Militar, para onde o médico da companhia nos despachou de urgência, nos diagnosticavam uma doença venérea, que não pudemos calar...

E a nossa entrada no barco, constrangidos. E a voz do comandante, entre a severidade e o riso, a reclamar de nós o cumprimento rigoroso das normas militares e a lembrar que um oficial de cavalaria, “antes de montar, deve conhecer primeiro os vícios da montada...”

Voltarei a ti, Maria Adelaide. E a África. Com o Valentim de permeio...

Manuel Veiga


  

sábado, junho 13, 2015

À MEMÓRIA DE UM RESISTENTE...


 Estamos aqui no centro:
Que as margens são mera circunstância...

E tu não foste apenas desfiladeiro
Ou passagem secreta das cavalgadas da História:
No olhar da águia o abismo é alimento e a vertigem voo...

Gesto de cristal puro onde mora o brilho solar dos dias
Que os homens inscrevem talvez sem o saberem
Como meta no quotidiano de cinza...

Dizem-te derrotado no licor dos elogios
- Como se tu foras História apenas! -
Mal sabendo que a tua força não tem destino à vista...

Lá onde o coração bate e o fogo se atiça
Como forja do tempo onde a palavra se faz arma
(E a lágrima poema) aí onde ombro com ombro
O suor das sementeiras e os cânticos se misturam
Se desenha teu rosto na pedra esculpido...

E outros homens e mulheres para além de ti
Gigantes de teu exemplo
Darão vida à tua luta...

Manuel Veiga – in Poemas Cativos


quarta-feira, junho 10, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXVII


Babilónia é alfobre de “mitos urbanos” – Hammurabi dixit!...

Ele próprio, Hammurabi, o legislador, se encena em seus irrisórios mitos (que não outros, helás!...) – dizendo o que disse, para desdizer o que está dito...

Os babilónios agrilhoados, qual Sísifo à pedra, aguentam... aguentam... – erguendo, por vezes, o olhar ao pico da montanha...

A Praça, eufórica, celebra o pontapé da bola – que, prolífera, multiplica os mitos com pés de barro...
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Um velho alfarrabista, mergulhado em livros antigos: “Mais vale o rosto solar dos heróis, que “eloquência muda” dos mitos...”

E exorta: “Babilónicos, rebentem as grilhetas e ousem a montanha...”       


terça-feira, junho 09, 2015

RUBROS OS MASTROS...


Rubros os mastros. E as colinas.
Em nuas confluências
De abraços. E de pétalas...

Derramam-se na cidade rios e memórias.
E soltam-se os poetas. E os murais...

Em gesto largo sobre o gume dos olhares
Maiakóvski – vindo de um Futuro grisalho
De saudade e de tanta teimosia! –
Abre-se no palco...

E grita em seu jeito gutural e bárbaro:
-“Este é o meu Povo. Ainda!...”

A seu lado, a Mulher de Vermelho
Solta a lágrima da fome
E a criança loira das espigas...

E então
- Palavra de cristal em riste! -
Arranca os olhos e rasga-se em febre
E pitonisa inflama-se na língua e nos prenúncios  
E ergue-se na aurora dos dias que hão-de vir...

Na densa nuvem alvoroçada
A multidão ignara ri e chora...

E um velho caminheiro alquebrado -
De fadigas e da idade - sobe então ao mais alto dos mastros
E ascende em lume o rubro das bandeiras...

Manuel Veiga


sábado, junho 06, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LXVI


Definitivamente, Babilónia entrou em atmosfera “happening” - que Hammurabi, o legislador, proclama, urbe et orbe, ser de “final feliz!...”

E prepara-se para entronizar o Mesmoquer dizer, prosseguir os cânones da fome e os desígnios da austeridade... 

Em contraponto, Sir Tony, o dos sete costados, pretende um “início feliz” – e propõe-se prosseguir os “passos” de Hammurabi...

Os babilónicos “aguentam, aguentam...”alguns milhares descem à rua, a exigir efectiva “Mudança”.

A Praça nem se dá conta, “presa” do último Milagre – Jesus transmuta, não a água em vinho (helás!), mas o vermelho em verde...  
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E um velho letrado, um tanto cínico: “Na Sociedade de Espectáculo é necessário que permaneça o Mesmo para que a Aparência reine...”


quinta-feira, junho 04, 2015

FRAGMENTOS III - A LIA...


.... Apalpou-se, estava vivo. E inteiro!

O Inferno agora era o ladrar das armas ligeiras e as balas a um palmo do nariz a desfazerem-se nos montículos das formigas “vaga-vaga” como abrigo, o tricot miúdo da “costureirinha” a martelar os ouvidos, os gritos, os choros, as imprecações, homens borrados de medo em prece, o sangue a empapar camuflados, o fogo descontrolado em barragem, a aplacar medos e a ira. E a desesperada gritaria da rádio “daqui, Papa: Romeo, escuto!...” e a voz exaltada do capitão “que caralho de merda andam a fazer os seus homens, nosso alferes? o 3º pelotão está a ser atingido pelo seu fogo!...” e o grito rouco e impotente do alferes “parar fogo, parar fogo!... disparar apenas para a copa das palmeiras, donde vêm os tiros...” E os primeiros raios da manhã e o roncar dos ronceiros T6 Harvard, em apoio aéreo, e o capitão a não largar  a braguilha “os seus homens vão fazer segurança ao “mosca”, que está a chegar para evacuar feridos e os mortos” e os cinquenta metros a rastejar na lama e no medo por entre o fogo cruzado e o menino, em sua fantasmagoria, agora não melro, mas evocando  Lia...

“Ah, malandros sem vergonha, que ides direitinhos para as profundezas do Inferno!... Com a vossa idade e já a fazer essas porcarias!...” - era a dona Elisa, do outro lado do muro, que separa o quintal do adro da Igreja. Do lado de cá, por baixo do vitral da sacristia, protegidos por uma reentrância do templo, a pequena e amorável Lia deitada de costas, vestido levantado pela cintura, de pernas esquálidas, em todo o esplendor dos seus sete anitos precoces, a exibir o sexo impúbere. Ele, menino, a obedecer, entre a inibição e o deslumbramento, a tocá-la e a mexer e agora ela também a abrir-lhe os calções e a puxá-lo para cima.

E então a voz de dona Elisa soou como trombetas do juízo final. Sodoma e Gomorra, estátuas de sal, caldeirões de água fervente, chamas, diabos negros a atiçar fornalhas em labaredas medonhas, bocarras deglutindo almas, choros e ranger de dentes, visões dantescas de gravuras e livros sagrados com que tias velhas e solteiras, zeladoras do Santíssimo Sacramento, o exorcizavam e, piedosas, o encomendavam a Deus e a seus anjos, explodiram como bola de fogo a derreter a alma “pecaminosa” do menino. E um choro genuíno, profundo, rios de lágrimas como enxurradas de inverno, toda a vergonha do mundo e o pânico e o menino a correr para o regaço da mãe, como expiação e lenitivo.

E a mãe preocupada perante o mutismo e o choro diluviano: “Que se passou, Lia? Porquê este choro?” E Lia, sereníssima, imperial, categórica: “Nada de especial. Estávamos a jogar à “apanhada” e o Manel caiu e magoou-se num joelho...”

A Lia, a soberaníssima Lia, sobrinha de padre, a Lia mestra de seus devaneios e infantis brincadeiras, acabara, sábia e redentora, de resgatar o menino das chamas do inferno!...

Reinava então, gloriosa, a manhã tropical em todo o esplendor de tonalidades de cores, cheiros e gritos. Descarregadas as bombas, os aviões desfizeram a emboscada. Mortos e feridos evacuados. O balanço ficaria para mais tarde. Os homens em fila indiana, desfeitos, de mochila às costas iniciavam então o regresso de dezenas de quilómetros, por dentro da bolanha  – aquele inferno terminara.

Outro começara!...

(E a Maria Adelaide em seu limbo, por enquanto)

Manuel Veiga


Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...