quinta-feira, março 26, 2015

Nos dias oblíquos em que declinamos...


Nos dias oblíquos em que declinamos a míngua
Como memórias de cal nos muros da cidade cercada
Toda a realidade é plana...

A brisa e o Tejo e o mar com suas ondas
São memórias de olhos gastos que persistem e
Teimam em medir distâncias pelos relógios que inventam
Em delírio de corujas nocturnas nas torres cimeiras de outrora...

Restos apenas evanescentes que os homens ignoram
Acorrentados ao jugo e à galera do tempo e ao ritmo
Dos remos. Música que suaviza o látego
E obscurece o entendimento como a gruta de sombra
E a mortiça lâmpada a escorrer luz de um só lado.

Somos essa dança de espectros e a imagem invertida
Projectada nas costas dos anjos que lhe dão asas
Multicores e novas Catedrais celebram no desenfreado
Jogo que tudo contamina e logo se extingue
No colapso dos altares inebriantes em que ardemos...

Somos o cordeiro mártir na ara do consumo e
Inflamamos a velas do Espectáculo que nos perfura os olhos...

Talvez a Catástrofe seja o novo nome das coisas.
E os muros da cidade sejam um espelho solar
Enorme. A acumular o grito libertador...

Manuel Veiga




terça-feira, março 24, 2015

HERBERTO HELDER



"Olha: eu queria saber em que parte
se morre, para ter uma flor e com ela
atravessar vozes leves e ardentes e crimes
sem roupa. 

Existe nas ilhas um silêncio para
a poeira tremer, e o teu rosto se voltar lentamente cheio de febre
para o lado de uma canção

                                                           terrível e fria"


Herberto Helder
"Poesia Toda" - pág.178 - 2º volume - Plátano Editora- Lisboa - 1973

sábado, março 21, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LX


Babilónia vai de vento em poupa. A cozinheira (dos swaps) garante que a dispensa está repleta – podem os babilónicos passar fome à fartazana que Babilónia está salva...

E, numa brejeirice sonsa, pede aos jovens – “multipliquem-se!...”

Entretanto, Hammurabi, o legislador, cria "intocáveis" aos magotes – que alguns dizem serem pacotes de vips... à experiência!

Certo, certo é que os babilónios aguentam – fartos de enredos, de pagar impostos, de afrontas e de palavras gastas...

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E um velho camponês, atento à sua poda: “É necessário cortar os galhos velhos para que os gomos despontem...”. E exorta: “Babilónicos, ao trabalho!...”



sexta-feira, março 20, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA e Outras Metáforas - Lançamento




PREFÁCIO
António Bica e João Corregedor da Fonseca

É sabido que qualquer obra de arte, literária ou qualquer outra, é em si mesma, um acto de comunicação e de partilha. Escreve-se, sobretudo, para ser lido e merecer, se não adesão, pelo menos a atenção dos outros. E, por mais impessoal que seja um autor em relação ao seu trabalho, raros serão os casos em que o acto de escrever não seja uma inquieta busca de cumplicidade com o leitor.

Mas se isto é verdade, não é menos certo que – desde o mais singelo acto criativo da vida quotidiana até à obra de arte mais elaborada – qualquer “criador” se revela ou projecta na “criatura” criada. Isto é, qualquer obra “fala” sempre do seu autor, por mais obscuro que seja o resultado, ou por mais sofisticado que seja o método e a linguagem em que se expressa.

Em particular na escrita, a linguagem do escritor remete de forma mais ou menos explícita, mais ou menos consciente, para as suas próprias pulsões, sonhos e desejos que exprimem e moldam o carácter do autor, enquanto sujeito da escrita e, no plano mais geral, expressa a sua específica “visão do mundo” e a sua própria matriz ideológica.

De tal forma é assim, que muitas vezes, para apreender completamente o sentido de um texto é indispensável compreender as específicas circunstâncias da sua criação, quer dizer, o contexto socio-temporal em que emergiu e as idiossincrasias do seu autor. As “Notícias de Babilónia e Outras Metáforas” são, ao que julgamos, deste ponto de vista, elucidativas.

Como refere a nota biográfica que integra este livro, Manuel Veiga nasceu e cresceu no meio rural transmontano, (...) em meados da década de quarenta do século passado. Em finais da segunda guerra mundial, o País era o que sabe – politicamente opressivo e retrógrado e, por outro lado, económico e socialmente atrasado.

Em todo o interior norte, prevalecia uma agricultura de subsistência. E, nesse mundo agreste, mais que a indispensável força física, era o engenho e “os saberes” a decidirem o resultado do confronto directo do homem com a natureza e os outros homens, no trabalho ou nas horas de lazer.

Não havia electricidade, nem estradas, nem “influências exteriores” significativas, para além da omnipresença da Igreja, desde o nascimento até à morte, no seu papel de conformação ideológica. Vistas do exterior, as comunidades rurais apresentavam-se assim formalmente homogéneas, a que um certo romantismo serôdio, estimulado pelo fascismo, dava uma aura de “paraíso perdido”. Mas, para um olhar mais arguto ou mais atento, eram perceptíveis as contradições e as subtis fissuras que atravessavam o espaço social rural daqueles tempos.

Cada um ocupava o lugar social que lhe estava naturalmente destinado, quer na Praça, quer na Igreja. E, se eram os teres e os haveres a destinarem o lugar de cada um era, no entanto, o saber quem dava autoridade e se impunha a consideração dos outros.

O tempo era circular, marcado pelo ritmo das colheitas. E a palavra parca. Mais que a enunciação de um discurso, importava a decifração dos sinais – os humores da meteorologia, o estado das colheitas, a fecundidade da terra, o trilho dos animais. Por vezes, no entanto, o Verbo fazia-se carne. E a Praça erguia-se, então, como lugar de todas as metamorfoses da Palavra – nas celebrações colectivas, na arrematação do trabalho, na proclamação do justo e do injusto, na definição do certo e do errado, na transgressão festiva, no picaresco, nas zombarias...

Foi este, pois, o tempo e o espaço social que o autor de “Notícias de Babilónia e Outras Metáforas” bebeu na infância e na adolescência e que, decisivamente, lhe moldaram o carácter (...).

Em meados dos anos sessenta, foi Coimbra e um outro despertar. Pouco depois, a guerra colonial, a que foi forçado. A posterior licenciatura em Direito, como trabalhador estudante, nos últimos anos do curso. A Revolução de 25 de Abril e a intervenção cívica e política - metas de um percurso em que se forjou como homem e cidadão (...).

Escreve agora Manuel Veiga com olhar crítico sobre os tempos de crise que o país e o mundo têm vivido desde há décadas e que, nos mais recentes anos, se tem acentuado, mediante a afirmação desenfreada do neoliberalismo económico e a proclamação de uma “cultura planetária” que esmaga todas as singularidades e se impõe em todo o lado, como expressão de uma ideologia de “pensamento único”.

O autor entende a crise racionalmente, mas sente-a emocionalmente. É sobretudo um criador de poesia, da qual não se desembaraça nestes textos. As suas metáforas políticas, quase sempre amargas, constituem, de alguma forma, insurgências de uma zombaria ascentral, com que a arraia-miúda se vingava dos desmandos dos poderosos. Outras vezes, os textos ecoam uma plangência dorida e esperançosa, como gestos solidários que se expõem desamparados ao leitor.

E, hoje, não deixa de manter uma grande firmeza na justa crítica que faz ao panorama social, cultural e político, nacional e internacional e aos contínuos desmandos do capitalismo de que o governo português é fiel servidor.

Que assim sejam, sempre – o autor e os seus textos. Com autenticidade e independência, seja qual for o género literário. E, como diria Aquilino Ribeiro “seja o autor o que lhe apetecer, desde que não arme em fariseu e não esteja nunca contra os simples de braço dado com os trafulhas, nem contra os fracos de braço dado com os poderosos.”

Como o percurso de sua vida garante!...

António Bica

João Corregedor da Fonseca

quarta-feira, março 18, 2015

O MEU AMIGO ZECA ( em reprise )


Vocês lembram-se do meu amigo Zeca? Sim, esse mesmo, o alentejano de Beja, solteirão impenitente e protector de donzelas desvalidas. Como esporadicamente vos dou notícia, o meu amigo Zeca encontra-se já há uns tempos “retirado da vida”, como ele, num suspiro, faz questão acentuar, passando os dedos pela papeira dos olhos, ou alargando a mão à calvície luzidia...

Quanto à profissão, bah! – o Zeca está sem pachorra para aturar cretinices e favores políticos. E quanto a saias, o meu amigo, enfaticamente, reclama que durante toda a vida as “mulheres lhe foram comer à mão” e que não será agora, portanto, “que irá arranjar jeito para ser cabide”, seja lá o que for que, em seu léxico, o morfema “cabide” possa significar...

De forma, que administrando, os réditos de uma carreira de “consultor” na área financeira, com altos e baixos, mas relativamente bem-sucedida, aí temos o meu amigo, do alto do seu apartamento debruçado sobre o Tejo, a desfrutar os prazeres que este inverno soalheiro lhe vai proporcionando, alargando-se em amplos passeios à beira rio, com um poderoso “labrador” pela trela...

Fora isso, apenas a cozinha, em que se esmera e sublima sabe-se lá que desejos... E o charuto e o conhaque, claro, com que obsequeia os amigos depois de suculenta refeição, seleccionadas, em cada caso – sei agora – em função dos gostos culinários de seus amigos. O prazer da partilha e da amizade é tão genuíno no Zeca, que o leva a este requinte de sensibilidade...

Há tempos atrás fui um dos seus comensais. Éramos quatro pândegos, de papilas gustativas bem afeitas (e afoitas) a paladares intensos, à volta de uma esplendorosa terrina com arroz de lampreia, escorrendo com seu molho espesso e cremoso, pelas gargantas, depois de bem degustados os pedaços, que o Zeca, com mão sábia, sabe temperar...

Manjar de anjos”, lhe chamaria Eça fosse dar-se o caso de gostar de lampreia e merecer, naturalmente, a honra de um convite do meu amigo Zeca...

Isto para vos dizer, que foi uma tarde a maneira antiga. Na lassidão dos conhaques prosseguiu a revisitação do roteiro nossos “pequenos ódios de estimação”, zurzindo as figurinhas e figurões que assombram o quotidiano dos portugueses. E, depois de alguns momentos de beatífico voo nos espirituosos vapores do álcool, eis que alguém traz, inesperadamente, o incontornável Eduardo Catroga, na ocasião em voga com a saga da privatização da EDP.

O torpor, porém, era manifesto e a “intromissão” não mereceu mais que uma pilhéria deslavada a propósito do alegado “tamanho” dos chineses e da roliça compleição física do dito Catroga.

Não sei se motivado pelo esforço de vencer a sonolência colectiva, se obedecendo à pulsão irresistível de acicatar o Zeca, segurei o fio da conversa e jogando com a figura anafada de meu amigo, lancei para a turba:

 - “Para além de economistas, aliás distintos, o Catroga e o Zeca estão a ficar cada vez mais parecidos, quase dois irmãos gémeos, não vos parece”?! ...”

O semi-sorriso de meus amigos, deixava prever “sangue”. Entrei, por isso, “a matar” e acentuei a ironia: - “Se lhe oferecermos um capachinho com a melena branca do Catroga, o Zeca bem pode funcionar como seu duplo, nos transes de maior risco do chairman da EDP”...

E, perante a gargalhada já solta, afoitei-me mais pouco: “Quem sabe se com o seu fenomenal currículo o Zeca não poderia dar contributo desinteressado para a baixa generalizada dos preços da energia e a integral realização do sósia, massajando os insignes joanetes da senhora sua esposa?

Como, por certo, compreenderão, mais que a figurinha congestionada do Catroga, esta excessiva graçola tinha outro alcance, a que apenas iniciados têm acesso. Visava, como alguns recordarão, circunstâncias antigas em que meu amigo Zeca, então promissor quadro de uma empresa pública, esteve à beirinha de “ter uma boa vida”, não fora uma senhora que “andava a pedi-las”, os incómodos joanetes e os sapatos apertados de uma zelosa sogra, como noutro espaço contei.

Não fora este lance de má sorte, o Zeca seria hoje chairman de uma qualquer empresa pública em vias de privatização, quiçá destronando o próprio Catroga. Claro que a partir dessa data, o Zeca passou a odiar sogras, joanetes e sapatos apertados...

Enfim, tempos passados que apenas uma mente perversa iria agora desenterrar...

O Zeca, porém, não desarmou. E com a condescendência com que a sua impoluta amizade sempre suportou as minhas impertinências, fixou-me com olhar irónico e atirou-me, arrasador:

- “Tu estás calado e calas-te!... Sei onde queres chegar. Mas como nunca na vida “comeste” nada de jeito (o que é manifesto exagero do Zeca) não tens autoridade para gozar com meus fracassos”... E, perante a gargalhada geral, continuou: - “E, fica sabendo, que o Catroga não tem "pintelhos" que cheguem aos meus, quanto mais tomates...”

Foi o delírio. E todos em coro: “Ó Zeca, ó Zeca, tu não sejas megalómano, pá! Os pintelhos do Catroga são celebérrimos - foram notícia de abertura dos telejornais, avaliados e dissecados em comentário político e, ao que parece agora até chegaram à China. Os pintelhos do Catroga são únicos, pá...”

Por momentos pressenti o Zeca embaraço, mas breve se recompôs: - “Vocês estão enganados. O Catroga tem “pentelhos”! Pintelhos tenho eu e espero que vocês... Os gajos nem sabem do que falam...

Embasbacamos!... O Zeca avança então douta teoria sobre os pêlos púberes, arrancando, do negrume da ignorância, a centelha da sua clarividência. Afinal os celebrados pelinhos vão buscar, ainda que indirectamente, a sua consagrada designação – imaginem! - aos mistérios de Baco e ... ao vinho!

O Zeca não tem dúvidas. Diz-se “pintelho” e não “pentelho”, pois a palavra vai buscar o sentido ao “pintar” do bago das uvas, antes da completa maturação. Frutos precoces, portanto, a que o povo, na sua criatividade associa a puberdade e os inocentes pelinhos...

Enfim, “pintelhices” do Zeca, que agora trazem novo problema aos seus amigos! Não sabemos ao certo se o devemos propor a Presidente da Comissão do Acordo Ortográfico, se a membro da Academia de Ciências, na classe de Letras, está bem de ver...

Que vos parece?

Manuel Veiga 



domingo, março 15, 2015

UM GOSTO ANTIGO DE ALFAZEMA...


Arde no ar um gosto antigo de alfazema
E o fio dos dias suspenso agora. Apenas
A festiva azáfama. E o corredor do tempo.
E as maçãs emolduradas. E as uvas deglutidas
Bago a bago. E o riso em bocas pregoeiras...

Outonais os dias embalsamados em colcha
Domingueira. E a linha do teu corpo
Debruada por meus dedos no vazio dessa ausência.
E os seios tão tenros - que ainda queimam:
Açucenas sobre feno...

A saia agora é vórtice. Esplendor na relva.
Voando. Que corpo se inflama ainda.
E o mar é teu joelho. E absoluto barco
Singrando em meus olhos. Cavaleiro imaculado
Na chama dessa aurora pioneira.

Chama e flor. Pois que em ti declino o lume
Dos dias e o tempo de outras margens:
Miragem sobre mim descendo...

Manuel Veiga



quarta-feira, março 11, 2015

ALVOROÇO TARDIO...


Hoje a várzea e sobre o rio o festivo freixo e sua sombra
E o cantar do melro no amarelo doirado do sol em fim de dia
E esta pedra no inamovível tempo em que me sento...

Nem sequer a melancólica aragem, nem o restolhar da memória
Como insecto em flor. Nem o mel silvestre da infância.
Nem o vime. Nem a aurora do sonho. Nem o cântico nas igrejas...

Apenas o alvoroço tardio. E esta pedra absurda no caminho
Como trono. E meus dedos desfiando contas. E o mistério
Inaudito das palavras. E o perfume da dor de todas as ausências.

Fenecem as grinaldas. Que as cores são apenas nevoeiro
Dos sentidos. Agora o vinho é espessura de bocas. Amargo.
E corpo do Desejo. Ardendo. Como lava em que me extingo...


Manuel Veiga

domingo, março 08, 2015

AS PALAVRAS QUE SOBRAM DESTE DIA...


No Dia Internacional da Mulher,
Para todas as Mulheres que têm a gentileza de frequentar este blog.
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Gostava de poder celebrar-te num poema
Não sei se de Natália ou de Sofia
Porém luminoso
E feminino...

Negam-se porém meus dedos
E a natureza revolve-se e grita
A minha condição máscula e seca...

Sacudo por isso apenas a crina
Das palavras que sobram deste dia
E as deponho em teu regaço
Calcinadas e frias.

E no teu seio de afectos orvalhadas
Reconhecerás Mulher a coisa pouca
Como sede em fio de água...

Manuel Veiga


sábado, março 07, 2015

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA LIX


Babilónia é um pântano – sulfuroso!... E um viveiro de garridas subtilezas...

Hammurabi, o legislador – qual cidadão relapso – tem falta de dinheiro e alega desconhecer a lei (que, aliás, legisla...) - razões de sobra para se esquecer de pagar o seu tributo à cidade...

Os babilónicos “aguentam, aguentam...” – a falta de dinheiro e todos os impostos que pagam...

Um odor nauseabundo infesta Babilónia - Hannibal, o possidónio “sensato”, garante trata-se apenas de suave perfume eleitoral...

Assim vai Babilónia...
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E um velho letrado, numa língua estranha: “dente lupus, cornus tarus petit” (cada defende-se como pode) – babilónios passem ao ataque...



sexta-feira, março 06, 2015

O LIVRO DOS CANSAÇOS - Licínia Quitério




Parabéns, Licínia Quitério!...

Mais um belo livro 
na já extensa produção literária 
de nossa amiga Licínia...


Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...