Sempre tive uma relação ambivalente com
o futebol. A jogar fui um desastre. Mas naquele tempo, onde houvesse peladinhas
e outros deslumbres da bola eu entrava em jogo. Tinha bons argumentos no
futebol, apesar de “não dar uma prá
caixa”...
Na infância, no espaço social rural onde
cresci, era eu o “dono da bola” e jogava calçado, numa equipa em que as
chuteiras eram os cinco dedos dos pés. Sei, hoje, que pouco contava, então,
quem era o “dono da bola” (de trapos), manifestamente, “propriedade colectiva”, pois que o vínculo individual deslassava
logo que era concebida nas mãos amorosas que lhe davam forma.
Mas usar botas, sim, era argumento. Quem
em tão encarniçados desafios se iria aventurar às canelas de um couraçado? A
vantagem significava era até “abuso de
posição privilegiada” e não raras vezes tive que jogar descalço, perante a
juvenil rebelião das massas.
Mais tarde, quando subi ao Liceu, os
meus “argumentos futebolísticos”
foram outros. Tinha fama de bom aluno e disso aproveitava. Digamos que dava um
certo chic intelectual aos bárbaros
torneios que se desenrolavam no largo do toural. E digam-me lá, quem enjeitaria
ter na sua equipa o melhor aluno da turma? É certo e sabido que os meus
compinchas me reservavam o lugar onde menos poderia atrapalhar, isto é, a jogar
na baliza: mais frango menos frango, sempre me poderia redimir com uma
placagem de bola, digna da televisão que não havia...
Uma tarde, num lance decisivo na grande
área, onde defesa e ataque se confundiam no prenúncio do golo, certamente
espicaçado pelos três a zero que a minha equipa já levava “na batata”, por entre um redemoinho de corpos e gritos, saltei em
voo, qual super-homem salvador, procurando a bola que teimava em saltar de
cabeça em cabeça.
“Azar
dos Távoras”!...
A bola entrou na baliza e, ali a meu lado, estendido no chão, sangrando
desalmadamente da boca, o avançado-craque da minha equipa que, em denodado
esforço de defesa, não encontrou melhor lance que não fosse cabecear e derrubar
seu esforçado guarda-redes e dar de mão beijada um novo golo à equipa
adversária.
Eu saí com um galo na testa e o meu
amigo partiu dois dentes. O que causou algum reboliço no Liceu com um raspanete
colectivo do reitor e, uma particular advertência à minha adolescente pessoa,
que “tinha obrigação de dar o exemplo e
ter mais juízo”...
Enfim, ficou tudo por ali. Sem qualquer
trauma...
No entanto, a partir dessa data, movido
certamente por outras pulsões, entretanto despertas, mais lúdicas e compulsivas
e pelo prazer, não puramente estético, das formas arredondadas, o futebol
perdeu para mim seu encanto e ficou no limbo da minha vida até bastante tarde:
decorriam os anos oitenta do passado século (meu Deus, como o tempo voa!)
quando voltei a olhar o futebol com alguma atenção...
Claro que para este divórcio, mais que
um certo snobismo intelectual (que não descarto) muito contribuía a trilogia “Fátima-Futebol-Fado”, pela qual a
generalidade dos jovens da minha geração nutria profundo desprezo.
Mas nos anos oitenta, o futebol
entrou-me outra vez em casa, pela porta grande. Meu filho, então na
adolescência, envergou as vestes de um fanático benfiquista (não conheço nenhum
benfiquista que não seja fanático) e – pai sofre! – para não perder o pé
reconciliei-me com o futebol. E, imaginem vocês, um émulo do Barrigana (velha
glória nas balizas do Futebol Clube do Porto) a vibrar de vermelho na “catedral
da Luz”.
Antes do “apagão”, está bem de ver...
Hoje posso dar-me ao luxo de uma posição
distanciada quanto ao futebol e ao fenómeno desportivo de uma maneira geral.
Gosto, no futebol, do delírio do golo, da interacção criativa, da organização e
trabalho colectivos, que não anulam talentos individuais, antes os estimulam.
Perdoo-lhe até um certo “patrioteirismo
de relvado” e toda a parafernália económico-mediática que o envolve e o
parasita como fenómeno de consumo das massas populares.
Mas quando, durante um mês de histeria
futebolística, em que quem trabalha é despedido ou perde salários e direitos
sociais em níveis inauditos, num mês de abissais regressões histórico-sociais,
em que as leis laborais são totalmente invertidas a favor do patronato, num mês
em que o País se afunda cada vez mais, rumo ao seu destino de colónia tolerada
no espaço europeu, esta histeria mediática em volta do futebol e dos feitos da
selecção nacional, não pode deixar de ser ofensiva para quem mantem a dignidade
e um pouco de lucidez.
E não posso deixar de me interrogar se o
desporto, há muito tempo esventrado da proclamação matricial “mens sana in corpore sano” e projectado,
como espectáculo, à escala mundial, pelo poder dos média, não representa um
exemplo eficaz das teorias da infantilização e embrutecimento (“tittytainment”), com que se pretende
anestesiar populações “supérfluas”,
potencialmente perigosas na sua frustração, e assim as lançar numa espécie de “letargia feliz” e inofensiva...
Assim vai este nosso
Mundo!...