quinta-feira, dezembro 27, 2012

RIMA A RIMA, ANTONIO...


 
Rima a rima, António
Como quem se arrima
Ao perfume da palavra
Que há-de vir...
Como estrela a luzir...
Ou Supernova que explode
Sem nada a deter
Na vibração do SER...

Mas se a gente se envaidece,
Como agora acontece
A palavra tropeça
E a escrita amolece...
 
O poema então coxeia, oh, oh...
E o poeta se enleia:
Ídolo de barro nos pés
Que se desfaz em pó...
 
(Razões que a vida tece...)

Afinal,
Viver, crescer (e escrever)
Nada mais é
Que abraçar o Mundo
E ser tudo
No nada que se é...





 

quinta-feira, dezembro 20, 2012

ORAÇAO LAICA...


Sob o alabastro da noite recorrente
Estrelas fumegantes despedem todas as profecias
E os passos dos homens são agora
Pés gretados e o lodo dos caminhos...
 
Os milagres são apenas fruto de um deus menor
Que nos visita à porta dos centros comerciais
No brilho ilusório dos cenários
E nas lentejoulas do grande Espectáculo
Que inibria – fogos-fátuos do Desejo...
 
Por vezes descem fio de Ariane no espaço do telejornal
E na angústia que servimos ao jantar
Como quem devora certezas mastigadas
E se move em círculo na garganta dos dias...
 
Emborcamos o vinho ácido. E comungamos os restos
Títeres num jogo que julgamos nosso
Imolados no altar das aparências...
 
Tempos calcinados de ambiguidades. Dizem-me
Que se salvam as crianças e que nem todas as sementes
São a esterilidade das pedras.
E que nossos pulsos podem superar montanhas

E que existe um Natal todos os dias.
Assim seja!...

domingo, dezembro 16, 2012

ÓSCAR NIEMEYER...



 “Não é o ângulo recto que me atrai, nem a linha recta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu País, na curva sinuosa dos rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.
 
De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein... “
 
Óscar Niemeyer
 
 

 De curvas é feita a Vida. E a História... – atrevo-me a acrecentar!

 

sexta-feira, dezembro 14, 2012

Como É Bom Ter Um Português em Bruxelas...

 
 
 
 
Uma proposta de Directiva da União Europeia relativa aos contractos públicos, em apreciação no Parlamento Europeu, constitui um capcioso artifício para nova investida contra o chamado “modelo social europeu” e a consequente regressão democrática e social.
A explícita intenção de liberalizar e privatizar a segurança social pública vem escondida no Anexo XVI da proposta de directiva em referência, que faz a listagem dos serviços públicos que passam a ser sujeitos às regras da concorrência e dos mercados e de cuja listagem constam:
- Serviços de saúde e serviços sociais
- Serviços administrativos nas áreas da educação, da saúde e da cultura
- Serviços relacionados com a segurança social obrigatória
- Serviços relacionados com as prestações sociais
 Preto no branco temos, portanto, a imposição vinculativa, em forma de Directiva Comunitária, que o direito interno Estados comunitários irá obrigatoriamente a absorver, a privatização da segurança social pública, a par dos serviços de saúde e outros serviços sociais assegurados pelo Estado.
Um propósito antigo e alvo apetecido do capital financeiro em Portugal e no espaço europeu, que agora entrou em processo legislativo, por impulso da Comissão Europeia e a presidência de Durão Barroso.
Numa vergonhosa golpaça, lembrando velhos tempos do MRPP, escondida num anexo de uma directiva comunitária sobre contratação pública qur, a ser aprovada no Parlamento Europeu, deixará escancarada a porta para a privatização da segurança social pública e outros serviços públicos do denominado Estado Social.
Com total cobertura jurídica da legislação comunitária...
O golpe – insiste-se - surge, sob o alto patrocínio de Durão Barroso que, como sabemos, além de se ter pisgado do governo português com a casa a arder, tem no seu glorioso currículo o papel de mordomo das Lajes na guerra do Iraque e, agora em Bruxelas, faz de tabelião e promotor dos poderosos interesses financeiros, que sufocam os povos europeus.~
Entretanto, cá pelo burgo, para antecipar méritos e apresentar serviço, afincadamente, se procura a “refundação do Estado”...
Como é bom ter um português em Bruxelas!...

sexta-feira, dezembro 07, 2012

ECO DAS HORAS E DAS PÉTALAS...


 
Na oculta linha onde todos os rostos se perfilam
Mar de sombras e inesperadas claridades
Nesse ínfimo átomo convexo onde a luz
Colapsa e de tão breve
Explode...
 
E a noite se ilumina em metamorfose de cinzas...
 
Nessa desértica alvura onde os ventos se soltam em fúria
E germina o latir dos sons. Bárbaros ainda.
Na gesta inaugural da Palavra a arder na boca
Em labareda. Como sarça.
Rítmica.
 
E na dança hermética das caligrafias. E na decifração dos dias.
Impressivos. Como voo da flecha em sua presa.
 
Aí nesta ara do tempo consumado. E no impoluto sangue
Das vítimas. Ergo o veneno e a taça. E bebo o fel.
E solto o grito. Como fecundo parto
De ervas tímidas. Ou o pulsar
Dos punhos.
 
Ou o eco das horas. E das pétalas...
 
............................................................................................
 
Peço desculpa pela minha falta de assuidade aos vossos blogs. Em breve, porém, regressarei ao ritmo habitual...
 
Beijos e Abraços! 

 

 

 

 

 

segunda-feira, dezembro 03, 2012

SUBVERSÃO DO PODER LOCAL DEMOCRATICO...

 
 
A proclamada reforma do poder local, que o governo PSD/CDS, sob a batuta da tróica, se propõe introduzir, constitui um verdadeiro programa de subversão do poder local democrático e a mais despudorada e acintosa tentativa de concretização do velho desígnio e ambição da direita de ajustar contas com uma das mais importantes conquistas de Abril.
 
De facto, as propostas agora anunciadas e as iniciativas legislativas em curso têm em vista, ao arrepio da Constituição da República, liquidar a autonomia das autarquias e reconstituir um modelo de dependência e completa subordinação das autarquias locais em relação ao Governo, existente até ao 25 de Abril.
 
Não cabe no âmbito destas linhas, traçar o quadro institucional do funcionamento das autarquias locais (Municípios e Freguesias). Importa, no entanto, assinalar que o Poder Local integra a organização democrática do Estado; e, conforme as normas constitucionais, as autarquias não são subsidiárias, nem dependente da Administração Pública central ou do governo.
 
O governo, no quadro da Constituição da Republica, tem apenas poderes de tutela de legalidade sobre as autarquias, mas não tem tutela de mérito sobre o funcionamento. Quer dizer que o Governo apenas pode avaliar a conformidade da actuação das autarquias aos dispositivos legais em vigor, mas não pode intervir no exercício das suas actividades, nem no funcionamento dos órgãos autárquicos, que nesse plano, apenas respondem (politicamente) perante as populações que representam.
 
Pois bem, o que está na forja é a completa subversão deste regime. De facto, dando continuidade a opções ensaiadas em momentos anteriores, por vezes com a iniciativa e a cumplicidade do PS, o governo actual desencadeou um salto qualitativo na ofensiva contra o poder local democrático.
 
Um ataque que a concretizar-se plenamente constituiria a mais completa descaracterização do poder local e a liquidação do que ele representa enquanto conquista de Abril: amplamente participado, com órgãos colegiais autenticamente democráticos e efectiva autonomia administrativa e financeira.
 
Bem pode dizer-se que este programa de agressão ao poder local, para além do retrocesso da vida democrática local, constitui também, pelas suas consequências, um programa de agressão às populações e às suas condições de vida, dado que será um factor de constrangimento do desenvolvimento económico e o consequente agravamento de assimetrias regionais.
 
Em rigor, pode afirmar-se que a profundas alterações almejadas pelo Governo PSD/CDS ao regime jurídico-político do Poder Local têm subjacente uma concepção política, que embora mantenha o princípio da eleição dos órgãos autárquicos (irremediavelmente limitado e amputado) não disfarça a ambição dos seus autores em impor um sistema de governação local que, à maneira do fascismo, nomei os presidentes de câmaras e os regedores para as freguesias.
 
E, assim, cada vez mais a democracia se reduz a um esqueleto, como “coisa” descarnada e exangue – a tal “santinha dos altares”, de que falava Saramago, venerável embora, mas distante e fria...

sexta-feira, novembro 30, 2012

CARTA ABERTA AO 1º MINISTRO

 
Exmo. Senhor Primeiro-Ministro,
 
Os signatários estão muito preocupados com as consequências da política seguida pelo Governo.
À data das últimas eleições legislativas já estava em vigor o Memorando de Entendimento com a Troika, de que foram também outorgantes os líderes dos dois Partidos que hoje fazem parte da Coligação governamental.
O País foi então inventariado à exaustão. Nenhum candidato à liderança do Governo podia invocar desconhecimento sobre a situação existente. O Programa eleitoral sufragado pelos Portugueses e o Programa de Governo aprovado na Assembleia da República, foram em muito excedidos com a política que se passou a aplicar. As consequências das medidas não anunciadas têm um impacto gravíssimo sobre os Portugueses e há uma contradição, nunca antes vista, entre o que foi prometido e o que está a ser levado à prática.
Os eleitores foram intencionalmente defraudados. Nenhuma circunstância conjuntural pode justificar o embuste.
Daí também a rejeição que de norte a sul do País existe contra o Governo. O caso não é para menos. Este clamor é fundamentado no interesse nacional e na necessidade imperiosa de se recriar a esperança no futuro. O Governo não hesita porém em afirmar, contra ventos e marés, que prosseguirá esta política - custe o que custar - e até recusa qualquer ideia da renegociação do Memorando.
Ao embuste, sustentado no cumprimento cego da austeridade que empobrece o País e é levado a efeito a qualquer preço, soma-se o desmantelamento de funções essenciais do Estado e a alienação imponderada de empresas estratégicas, os cortes impiedosos nas pensões e nas reformas dos que descontaram para a Segurança Social uma vida inteira, confiando no Estado, as reduções dos salários que não poupam sequer os mais baixos, o incentivo à emigração, o crescimento do desemprego com níveis incomportáveis e a postura de seguidismo e capitulação à lógica neoliberal dos mercados.
Perdeu-se toda e qualquer esperança.
No meio deste vendaval, as previsões que o Governo tem apresentado quanto ao PIB, ao emprego, ao consumo, ao investimento, ao défice, à dívida pública e ao mais que se sabe, têm sido, porque erróneas, reiteradamente revistas em baixa.
O Governo, num fanatismo cego que recusa a evidência, está a fazer caminhar o País para o abismo.
A recente aprovação de um Orçamento de Estado iníquo, injusto, socialmente condenável, que não será cumprido e que aprofundará em 2013 a recessão, é de uma enorme gravidade, para além de conter disposições de duvidosa constitucionalidade. O agravamento incomportável da situação social, económica, financeira e política, será uma realidade se não se puser termo à política seguida.
Perante estes factos, os signatários interpretam – e justamente – o crescente clamor que contra o Governo se ergue, como uma exigência, para que o Senhor Primeiro-Ministro altere, urgentemente, as opções políticas que vem seguindo, sob pena de, pelo interesse nacional, ser seu dever retirar as consequências políticas que se impõem, apresentando a demissão ao Senhor Presidente da República, poupando assim o País e os Portugueses ainda a mais graves e imprevisíveis consequências.
                        É indispensável mudar de política para que os Portugueses retomem confiança e esperança no futuro.
PS: da presente os signatários darão conhecimento ao Senhor Presidente da República.
 
Lisboa, 29 de Novembro de 2012
 
MÁRIO SOARES
ADELINO MALTEZ  (Professor Universitário-Lisboa)
ALFREDO BRUTO DA COSTA (Sociólogo)
ALICE VIEIRA (Escritora)
ÁLVARO SIZA VIEIRA (Arquiteto)
AMÉRICO FIGUEIREDO (Médico)
ANA PAULA ARNAUT (Professora Universitária-Coimbra)
ANA SOUSA DIAS (Jornalista)
ANDRÉ LETRIA (Ilustrador)
ANTERO RIBEIRO DA SILVA (Militar Reformado)
ANTÓNIO ARNAUT (Advogado)
ANTÓNIO BAPTISTA BASTOS (Jornalista e Escritor)
ANTÓNIO DIAS DA CUNHA (Empresário)
ANTÓNIO PIRES VELOSO (Militar Reformado)
ANTÓNIO REIS (Professor Universitário-Lisboa)
ARTUR PITA ALVES (Militar reformado)
BOAVENTURA SOUSA SANTOS (Professor Universitário-Coimbra)
CARLOS ANDRÉ (Professor Universitário-Coimbra)
CARLOS SÁ FURTADO (Professor Universitário-Coimbra)
CARLOS TRINDADE (Sindicalista)
CESÁRIO BORGA (Jornalista)
CIPRIANO JUSTO (Médico)
CLARA FERREIRA ALVES (Jornalista e Escritora)
CONSTANTINO ALVES (Sacerdote)
CORÁLIA VICENTE (Professora Universitária-Porto)
DANIEL OLIVEIRA (Jornalista)
DUARTE CORDEIRO (Deputado)
EDUARDO FERRO RODRIGUES (Deputado)
EDUARDO LOURENÇO (Professor Universitário)
EUGÉNIO FERREIRA ALVES (Jornalista)
FERNANDO GOMES (Sindicalista)
FERNANDO ROSAS (Professor Universitário-Lisboa)
FERNANDO TORDO (Músico)
FRANCISCO SIMÕES (Escultor)
FREI BENTO DOMINGUES (Teólogo)
HELENA PINTO (Deputada)
HENRIQUE BOTELHO (Médico)
INES DE MEDEIROS (Deputada)
INÊS PEDROSA (Escritora)
JAIME RAMOS (Médico)
JOANA AMARAL DIAS (Professora Universitária-Lisboa)
JOÃO CUTILEIRO (Escultor)
JOÃO FERREIRA DO AMARAL (Professor Universitário-Lisboa)
JOÃO GALAMBA (Deputado)
JOÃO TORRES (Secretário-Geral da Juventude Socialista)
JOSÉ BARATA-MOURA (Professor Universitário-Lisboa)
JOSÉ DE FARIA COSTA (Professor Universitário-Coimbra)
JOSÉ JORGE LETRIA (Escritor)
JOSÉ LEMOS FERREIRA (Militar Reformado)
JOSÉ MEDEIROS FERREIRA (Professor Universitário-Lisboa)
JÚLIO POMAR (Pintor)
LÍDIA JORGE (Escritora)
LUÍS REIS TORGAL (Professor Universitário-Coimbra)
 
(e outras dezenas de personalidades da vida política, cívica e intelectual portuguesa)
 

terça-feira, novembro 27, 2012

FLORES EM TEU REGAÇO?...


Vicejam flores em teu regaço?
Espalha-as em qualquer terreiro ou tece grinaldas
Na fronte curvada dos vencidos...
 
Como o perfume das rosas
Derramado nos espinhos...
 
Coroa que se rasga em dor no corpo insano...
 
E de permeio...
 
Colhe apenas a diferença subtil da perda
(ou daquele ganho) – que a hora passa!
 
Agora...

domingo, novembro 25, 2012

FUNDAMENTOS DE UMA VIDA OUTRA...

 
 
No seu aparato, o poder mediático reveste-se das suas próprias liturgias de poder, não apenas pelo seu papel social (e a quem serve), mas porque como verdadeiro poder é visto pela sociedade, que o identifica como algo superior, definidor da realidade, revelador da verdade e criador de mitos, celebridades, que alimentam o imaginário colectivo.
 
A especificidade da questão é que o poder mediático se realiza numa espécie de “submissão voluntária”. A interiorização subjectiva dos modelos e comportamentos sociais e, sobretudo, a interiorização do “olhar do outro”, que o poder mediático exponencia, transforma cada indivíduo concreto no seu próprio vigilante.
 
O temor interiorizado “do que os outros vão pensar” (por não se frequentar tal o tal meio, conhecer a vida de tal celebridade, usar tal marca de vestuário, etc. etc.) constitui motivo de submissão voluntária à ordem estabelecida e ao consenso social, ou seja, constitui um poderoso e subtil elemento de sustentação (pela inércia) do sistema de poder.
 
Como romper o cerco?
 
Importa acentuar que, como indica Marx, a história é construída a partir das condições existentes e que a superação de uma formação social passa necessariamente pela identificação das manifestações próprias do respectivo poder.
 
Acontece que, desde o início das sociedades modernas, os meios de comunicação contribuíram decisivamente para a construção e a modulação das formas de pensar e os comportamentos dos indivíduos e para a consolidação das sociedades capitalistas modernas. Como se sabe, um dos traços fundamentais do mundo contemporâneo é exactamente o inesgotável fluxo de imagens e de conteúdos simbólicos, que conformam a realidade, as relações sociais e a subjectividade individual.
 
A realidade exige assim que os cidadãos saibam lidar com a espectacularidade da informação que invadem diariamente a vida quotidiana e com o impacto do fluxo acelerado de informações, imagens e acontecimentos, que os envolvem. Saber interpretá-los e dar-lhe um significado será uma forma de exercício do poder por parte dos cidadãos, que irá contribuir seguramente para destruturar os poderes dominantes.
 
Assim, importará ter presente que, se é verdade que somos produtos da sociedade, também somos nós, cidadãos, os produtores da sociedade que almejamos. Não somos meras marionetas de um jogo de forças, nem meros expectadores dos embates dos diversos poderes.
 
Cada um de nós é co-autor da trama em que os poderes se tecem. E, portanto, o nosso silêncio e passividade, ou a nossa acção decidida irão contribuir para manter ou alterar o estado das coisas.
 
Afinal, onde “há poder há resistência”. E toda a resistência cria por si novas “formas do poder-saber”.
 
Quer dizer, fundamentos de uma vida-outra...
 

segunda-feira, novembro 19, 2012

Da Visita da Tia Rica às Receitas da "Santinha"...

 
 
O meio social dos tempos da minha infância era povoado por figuras-tipo que, pela sua “densidade sociológica” se impunham, conformando comportamentos e atitudes, ou abrindo espaço ao pícaro e ao grotesco.
 
Nessa diversificada galeria de tipos sobressaia a “tia rica” e, noutro polo, a “santinha”, imune aos apelos da carne e muito amiga dos pobrezinhos. Apesar das óbvias diferenças de perfil sociológico, completavam-se na especiosa tarefa de velarem pela ordem social e a defesa dos bons costumes.
 
De vez em quando, sobretudo em tempos de festa e celebração colectiva, soltavam-se, porém, os diabos da transgressão e, então a “santinha” e a “tia rica” eram o alvo privilegiado da galhofa da garotada e do acinte dos adultos. Que ambas suportavam contrafeitas e vago azedume, por amor a Deus e desconto dos seus (delas) pecados...
 
A “tia rica”, como se deduz, era abastada de terras e cabedais, geralmente solteirona e autoritária, que no amanho das terras e no comando dos serviçais, sublimava as agruras da castidade, sendo, porém, que não se livrava da fama de meter entre os lençóis, qual Messalina rural, os criados e jornaleiros mais afoitos e avantajados.
 
Enfim, contos de outras vozes, apenas sussurradas e, certamente, despeitadas por alguma afronta mal sarada...
 
Sabido de ciência certa era que, naquele tempo, no espaço social da minha aldeia, não mexia folha, nem cantava pássaro nas árvores, sem autorização da “tia rica”. De facto, em sua volta da excelsa senhora, girava densa teia de clientelas, que ela administrava com habilidade e lhe permitia sustentar o seu poder.
 
Nessa estratégia de domínio, extraia a maior fecundidade da sua situação de celibatária, que lhe permitia fazer afilhados até aos limites das povoações vizinhas e, assim, aumentar “extramuros” a sua rede de influências.
 
Claro que levar criancinhas à pia baptismal trazia o seu ónus, obrigações de que não poderia descartar-se. E, assim, a “tia rica” todos os anos cumpria o seu ritual de visitas à numerosa prole de afilhados, levando no regaço não pão, nem rosas, mas coisa nenhuma. Enfim, digamos, meia dúzia de rebuçados e umas fugidias festas na cabeça das criancinhas.
 
Quer dizer, uma mão cheia de promessas. E a consagração do “bom comportamento” dos infantes apadrinhados e suas famílias...
 
Como vos referi, surgindo nesse recanto da minha memória, a figura da “santinha”, noutro plano. Embiocada, sempre de negro, zeladora da salvação das almas, intriguista e maledicente, toda ela ardia no temor de Deus e no amor aos pobrezinhos.
 
Por vezes tinha visões místicas. E no alvoroço de tamanha santidade, recomendava aos crentes que, na benfazeja caridade, deveriam dar aos pedintes apenas pão negro, porquanto era habituá-los mal “favorecê-los” com o alvo pão de trigo...
 
Bem sei que hoje os tempos são outros. Mas desde há uns escassos dias a esta parte, no mesmo contexto temporal, ficamos todos esclarecidos sobre as viagens “à parvónia” da “tia rica” e, noutro plano, esclarecidos também sobre as virtudes da pobreza, que nos inibem de comer bifes para não ficarmos mal habituados...
 
Afinal o meu País (a Europa? O Mundo?) são os “os sinos da minha aldeia”, de que fala o Poeta. Ainda...
 
Fotos:
1 – “Público”
2 – Georges Dussand – in “Trás-os-Montes”
 
 

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...