Há uns anos atrás, nos alvores dos anos
2000, o célebre financeiro George Soros, num livro sugestivo com o título “A
crise do capitalismo global – a Sociedade Aberta Ameaçada”, interrogava-se –
cito de memória – “se a democracia seria
compatível com o sistema capitalista”.
E, na sua tese, considerava que embora o
capitalismo esteja associado à democracia e lhe tenha servido como legitimação
ideológica, considera o financeiro que há quem sustente ser necessária uma “certa forma de ditadura para que o
desenvolvimento se desencadeie”.
Pois não é verdade que, entre nós houve quem,
enquanto ministra das Finanças, tivesse sugerido a “suspensão da democracia por uns tempos” até as contas públicas
ficarem em ordem. Procurou a pessoa em causa rectificar depois, como se ironia
fosse, mas o agravo à democracia ficou. Sem remissão…
Face à gravidade da situação, os
desenvolvimentos posteriores da crise do sistema capitalista têm vindo a fazer
tocar as campainhas de alarme e a sobressaltar os espíritos mais lúcidos e as
consciências mais inquietas.
Em Wall Street, centro nevrálgico do
capitalismo global, a tensão entre capitalismo e democracia explode, com o
movimento “Occupy Wall Street”. Para a opinião pública norte-americana este
embate entre capitalismo e democracia deve soar com muita estranheza e
perplexidade.
Porventura capitalismo e democracia não
foram sempre considerados, no chamado mundo ocidental, como irmãos
siameses e indelevelmente inscritos nos actos fundadores da grande nação
norte-americana? Esse foi também, sem dúvida, para os governantes e opinião
pública norte-americanos o leitmotiv durante a guerra fria, para quem, na sua
propaganda, comunismo e democracia seriam incompatíveis.
Mas depois da guerra fria as coisas
complicaram-se. É verdade, que após o colapso da URSS, os políticos
norte-americanos e os intelectuais que por todo o mundo os servem quiseram fazer-nos acreditar que levar o
capitalismo à China seria a proclamação da democracia naquele país. Vê-se agora
o tamanho da presunção. A China está sentada numa montanha de títulos de dívida
pública norte-americana, sem o mínimo abalo no regime político, que sustenta os
enormes ritmos de crescimento e exploração.
Se nos quisermos aproximar da realidade
europeia, então constataremos que a democracia, a “tal santa que continua mumificada nos altares” como diria
Saramago, tem sofrido, nos últimos tempos, trato de polé. Em nome da
austeridade, as grandes instituições financeiras abriram, sem pudor, guerra
aberta aos governos e instituições democráticas.
Assistimos, assim, estupefactos, a que os
ditos mercados capturem a democracia, de forma deliberada e pensada. Políticos,
no exercício de funções governativas, na Finlândia, sustentam, sem pudor, que os seis países da zona euro, com a classificação triplo AAA, deveriam ter “mais voz” nos assuntos económicos
europeus que os onze membros restantes. E, assim, a Europa meridional ficar
subordinada politicamente à Alemanha e à Escandinávia e, em última análise, aos
ditames da classificação creditícia pelas agências especializadas.
Mais grave ainda é que tais ideias fazem caminho
nas instâncias comunitárias, como foi bem patente nos últimos desenvolvimentos,
em que a democracia (mitigada) no funcionamento da União Europeia se vergou à
vontade da senhora Merkel.
Bem vistas as coisas, o que os denominados
mercados estão a fazer é ilidir a componente de igualdade social dos indivíduos
e Estados, inscrita na matriz da Democracia e na génese da revolução liberal,
para em alternativa, estabelecerem o principio não de “um homem (ou um Estado) um voto”, mas o princípio de “um euro, um voto”, quer dizer, a
necessidade de ser proprietário (deter poder económico) para se poder ser
benificiário da Democracia.
Uma regressão histórica que nos remete
para o século XVIII, em que o direito propriedade estava acima de qualquer
legalidade constitucional…