Surpreendo-me a escrever sobre a bola. Eu explico...
Tenho com o futebol uma relação que diria adúltera. Sempre amei a bola, mas sempre a troquei por emoções mais comezinhas. Em criança, no microcosmos social da minha infância, quando como “bando de pardais à solta”, o adro da igreja era arena de nossos folguedos. E, então, a bola de trapos circulava entre nós, com a mágica grandeza de quem pontapeia a Lua...
Um dia apareceu minha Mãe com uma bola de borracha, não maior que o tamanho de um punho e, com aquele sorriso terno que ainda hoje me afaga a alma, advertiu-me: - “espero que, a partir de agora, não continuem a desaparecer as meias cá de casa...”. Cujo destino - o das meias – era, como se presume, municiar a reserva estratégica das bolas de trapos...
Garanto-vos que, ao longo da vida, foi para mim este um dos presentes mais preciosos, que me permitiu, naquela época, subir mais uns degraus na consideração social dos putos da aldeia e, em especial, dos meus comparsas da bola...
Acontece, porém, que subir na “escala social” tem os seus contras. E ser o “dono da bola” tem os seus quês... A questão é que, naquele tempo, a maioria andava descalça e as chuteiras eram, portanto, os cinco dedos de cada pé. Usar um par de botas cardadas era, pois, nessa contingência, não apenas um privilégio, mas também uma decisiva vantagem no jogo da bola, como bem se compreende.
Por isso, numa espécie de luta de classes antecipada, a maioria obrigava os raros que usavam sapatos a descalçarem-se para poderem entrar em jogo. Ainda argumentei, titubeante, com a minha qualidade de “dono da bola”, mas antes não o fizera, pois que, reunido o infantil conselho de estado, a maioria descalça deliberou prescindir da bola de borracha e se eu queria jogar que o fizesse sozinho. E que tivesse bom proveito mais a “minha” bola...
Entre a bola e os amigos, escolhi, naturalmente, os amigos. Imaginem, porém, o drama de uns pés mimosos a jogarem naquele “relvado”, povoado de pedras, areias e covas, como era então o adro da Igreja. Breve ficavam repletos de mazelas ...
Ensaiei, por isso, (e agora sem oposição da maioria) o lugar de guarda-redes, que ninguém queria. Mas cedo percebi que o prazer da bola está em correr atrás dela e que o jogo é para ser jogado e não para vê-lo passar, parado!...
Pedi, por isso, (“por exaustão” eheheh) a substituição na equipa e a “minha” bola lá continuou a rolar no melhor espírito comunitário... E, como na vida, o que se perde num lado se ganha por outro, passei a passar as tardes a jogar à “apanhada” ou às “escondidas” com as rapariguinhas da minha idade, com vantagem de poder jogar calçado, entre outros privilégios de recorte mais delicado...
Quando mais tarde subi ao Liceu ainda fiz uns bons jogos de futebol, num terreno baldio nos arrabaldes da cidade. Mas a vida é caprichosa – num jogo de “tudo ou nada”, ao saltar de cabeça a uma bola bombeada para a área, fiz um lanho nos lábios e parti um dente a um dos meus melhores amigos. O que foi um caso sério com o reitor...
Manifestamente, o meu destino não era o futebol. E, por isso, deixei de jogar...Ainda tentei coleccionar “cromos da bola”, talvez para sublimar a frustração.
Porém, não tardei em perceber, no ardor da minha imaginação de adolescente, que as pernas da Cyd Charisse e da Virgínia Mayo, ou os seios da Ava Gardner tinham outro encanto que não as pernas do Pedroto ou da carantonha do Barrigana, velhas glórias do “FCP”, meu clube de sempre. E os toques na “redondinha” passaram a ser outros...
Enfim, por uma vez, a magia do cinema destronou o futebol...
Não me vou alongar na minha relação de amor/ódio com o futebol. Confesso-vos apenas que, em determinada época, me divorciei em absoluto. O “f” de futebol estava, para meu gosto, demasiado embrulhado noutros “ff”, de forma que com a água do banho despejei também o prazer da bola. E assim, com alguma sobranceria - reconheço – transferi-me, com armas e bagagens, para outros amores e outros interesses.
Hoje, em boa medida, (porque o ciclo se estreita e poucos prazeres me restam) gostava de me reconciliar com o futebol. Totalmente, porque é um belo e inteligente jogo... Mas quando oiço os “crânios” da bola depois dos jogos a pretenderem justificar o injustificável, ou a excelsa criatura que comanda a selecção a substituir jogadores porque “estava no plano do jogo” vem à superfície todo o meu azedume e desisto, rezingando para os meus botões – “arre! estou farto de burocratas...”
Salva-me, nesta emergência, o prazer de um poeminha e a vossa calorosa cumplicidade...