quarta-feira, novembro 12, 2008

Palavras Outras - "Amanhã..."

"Sabemos menos do tempo do que o tempo sabe de nós. Mas o menos que dele sabemos já chega para sabermos que os próximos dias, os próximos meses, os próximos anos vão ser o tempo de uma grande insónia cercada pela noite que cresce. Hora a hora, minuto a minuto, surgem, por todo o lado, os indícios de uma desgraça que avança e cintilam os sinais de um pânico que corre.

Não são apenas as bolsas que caem, nem o desemprego que aumenta, nem as dívidas que crescem, nem os bancos que se afundam. É, antes disso e depois disso, a imagem fúnebre de um sistema financeiro que se devora a si próprio, devorando-nos e devorando a esperança, sem a qual a vida é empurrada para a morte.

Nesta “epopeia americana” que terminou em tragédia mundial, George W. Bush quis ser Aquiles, mas acabou num “Édipo de Guantánamo” que não conseguiu vencer a esfinge chamada Bin Laden (mas Gore Vidal diz: “Não precisamos de Freud. quando-se trata de Calígula”); Dick Cheney é um Creonte de petrolífera; Alan Greenspan, uma Medeia de Wall Street; John McCain, um Pátroclo tardio; Sarah Palin, uma Clitmnestra de casino (ou será Hécuba?). E Barack Obama é o Ulisses de uma Ítaca em chamas, com o mundo transformando na Penélope que o esperava.

E por todo o lado ouve-se o grito de Antígona a clamar pela justiça que desobedeça à injustiça que manda. Aqueles que durante anos aplaudiram, de Washington a Bagdade, a representação da peça, participaram no elenco, escolheram o teatro, serviram de ponto, desenharam o cenário, fizeram os figurinos, teceram o enredo, são agora os mesmos que se fingem surpreendidos com o desfecho: um desastre que começou a revelar-se na sua enormidade e que eles olham como se estivessem a ver o munido ao contrário.

Por isso, andam cada vez mais de cabeça para baixo para tentarem vê-lo direito. Num tempo tão despossuído de si mesmo, é natural que já nem haja consciência da tragédia que por todo o lado nos envolve como o ar que respiramos. E essa inconsciência, essa ignorância, essa irresponsabilidade são o mais trágico do trágico.

O tempo sabe mais de nós do que nós sabemos do tempo. E o que ele sabe de nós diz-nos que os próximos anos vão ser terríveis: de incerteza, de insegurança, de perigo, de medo, de ansiedade. Aqueles que, ainda há pouco, se vestiam de um optimismo triunfante e calculista cobrem-se agora de um pessimismo cobarde e assustado. Sabemos que, como é costume, quem vai sofrer mais são os mais inocentes, aqueles que têm menos culpas. Sabemos que os autores do desastre são os que estão a recato dele e dos seus horrores, sem consciência, sem vergonha, sem compaixão - e com dinheiro inesgotável.

Sabemos que a vida será um alfabeto de dor, com o qual escreveremos o texto da mudança. Sabemos que voltaremos a passar por essa “confusão cruel e inútil” de, que um dia falava George Steiner falando da História. Quando esteve em Lisboa, da última vez, o autor de “Errata” disse, sobre o que se estava a passar, palavras de que ninguém quis ouvir nem o som, nem o sentido. Ele afirmou: “Espanta-me que os pobres não se revoltem...”

E acrescentou que estranhava, quando todas as manhãs abria o jornal, não ver lá escrito que “tinham assassinado um daqueles empresários que encerram fábricas e depois se metem nos seus jactos privados para ir passar férias a Barbados”. Steiner ecoa neste seu comentário violento o antigo clamor dos profetas judeus do Antigo Testamento, que faziam da cólera uma ameaça e só depois um presságio.

Hoje, o vento mudou e tudo muda com ele. Lemos os jornais de todo o mundo e percebemos que cada jornalista passou a ser, mesmo sem o saber ou sem o querer, um São João que, nos seus vaticínios, promete um Apocalipse que não surgirá, como o outro, no fim dos tempos: este apocalipse é iminente, instantâneo, vertiginoso. Virá amanhã, logo à tarde, agora mesmo.

Mas, com à inconstância de tudo, não é impossível que um dia destes se anuncie o regresso ao Génesis primordial, onde do caos se gerará a luz e, sob ela, se criará de novo o mundo"


José Manuel Santos – in Suplemento “Actual” – Jornal “Expresso” de 8.11.08

23 comentários:

**Viver a Alma** disse...

Salvé!

Um texto lúcido, visando algumas profecias, e que estão prestes a realizaem-se - o tempo o dirá!
Não é apenas o caos financeiro mundial, que está em causa; mas sim, algo bem mais Alto em nós, e, em nós estagnado! Estes "sinais" vieram dizer que chegou a hora de DESPERTAR!!! - este post vem corroborar, o que escrevi anteriormente.
A hora não é de "dar vivas a Obama!" - ele não é o "salvador"!
Esta hora, é de revisão plena de Quem Somos, para onde vamos, o que queremos, ou "PODEMOS" - e aqui sim, de nós para nós, e de nós para o todo. E só!
A hora é pois, de reflexão, moderação, espera e silêncio; para que, na altura certa, haja PRONTIDÃO, para o que vier! De NADA SERVE O MEDO, O PÂNICO. O caos, está instalado desde há muito tempo, mas poucos se aperceberam disso; tanto assim, que a maioria questiona-se dos porquês, mas... continua adormecida, dormente, queixosa!

Saiba-se que não foram só os acontecimentos de há 2000 e tal anos atrás, que se cumpriram....Não!
Todos os "poderes" (ilusórios) enfraquecerão e as novas torres de Babel, ruirão. Não há por onde fugir, nem a quem socorrer; isto agora é para todos, e é a doer!!!

Sugere-se concentração, e que cada um pense pela sua própria cabeça e não, comme d'habitude, pela cabeça do outro, ou pela global! - como reza a História; contudo, nem com ela, se aprendeu...pelos vistos!

Abraço de sempre
MAriz

Frioleiras disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Frioleiras disse...

"sabemos menos do tempo do que o tempo sabe de nós".

....................hoje tive a prova disso... tristemente,

bj

hfm disse...

Nunca perco esta crónica pelo contexto e pela limpidez de uma linguagem sem tiques nem trejeitos.

vida de vidro disse...

"Num tempo tão despossuído de si mesmo..." Perplexos estamos todos de estar neste tempo e de ver materializarem-se temores antigos. Decerto, o pânico é inútil mas digam isso aos que já nada têm. E o que é menos que nada?
Li esta crónica com fascinação. E angústia que não consegui evitar. **

Graça Pires disse...

Já tinha lido este texto, como leio sempre os textos do José Manuel Santos. Acho espantosa a forma lúcida como ele consegue expressar muito do que penso.
Um abraço.

São disse...

Falando em profecias: os Maias antigos, os que detinham saberes fabulosos, deixaram aviso de que enormes e fundíssimas alterações ocorrerão daqui a cerca de quatro anos no planeta.
E se aqueles povos foram capazes de prever o seu próprio fim...
Abraço.

jrd disse...

Há muito que deixei de ler o dito jornal. Não consigo, não sou capaz.
Felizmente que, graças ao RP, tive oportunidade de admirar esta crónica de excelência.
Um abraço

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

uma cronica muito bem escolhida.

pertinente.

fica um beij

batista disse...

não conhecia o autor: até agora!
Amigo, faz-me um favor: caso tenha mais escritos dele, favor me enviar por e-mail, certo?
ilhamutuns@uol.com.br

leitura oportuna. valeu, mesmo!

mdsol disse...

Gostei de ler!
:))

luis lourenço disse...

arrepiante lúcido e mesmo trágico!
algo terá de ser feito para inverter este apocalipse incerto...

abraços

Marco Rebelo disse...

sim, sem duvida um texto túcido :)

C Valente disse...

"Sabemos menos do tempo do que o tempo sabe de nós." Grande verdade
Bom fim de semana e saudações amigas

Unknown disse...

Estará iminente a católica e postecipada ressurreição dos mortos!...
.
E para os não católicos?
E para os que não crêem, mas se importam com a humanidade?
.
[Beijo...@]

rigi disse...

não sei nem do tempo, nem de mim,

sei

apenas,
deste instante.

Divinius disse...

Tudo é possivel...
:)

Nilson Barcelli disse...

Um excelente artigo de opinião.
Gostei de ler.
Abraço.

mariam [Maria Martins] disse...

Herético,
gostei de ler este artigo, mas, sou assim a modos que um pouco naif... então, prefiro, deixar correr o tal enexorável tempo, sem grandes alarmismos, vivermos o melhor que pudermos e soubermos sem "atropelar" terceiros, tentando não maltratar o meio-ambiente, no entanto, sempre aqui lhe deixo um subblog, do "Lobices", que costumo visitar, que me inquietou bastante quando por lá passei....
http://endat2012.blogspot.com/

Bom Domingo e uma melhor semana
um sorriso :)

mariam

Eme disse...

Venha ele, esse novo mundo em que todos tomarão consciência que estava tudo errado e quererão fazer tudo melhor. Todos andarão felizes de cabeça levantada, a riqueza repartida de igual modo por todos, crises (o que é isso?) só se for as de riso, e todos deixarão de viver em função do tempo inimigo do sossego e da serenidade..

sonhemos, pois então..

éme. disse...

Sim,
Amanhã
é uma magnífica palavra.
E o texto... sim, palavras brilhantemente deixadas aqui.

C Valente disse...

Passei reli alguns dos bons poemas
Saudações amigas

Oliver Pickwick disse...

Aquele velho livro, o das Revelações, escrito há quase 2000 anos, dizia a mesma coisa; é óbvio que, com outras palavras. E, assim como você, também sou herético, contudo, acredito nisso.
Por outro lado, também com outras palavras, é claro, o livro menciona prenúncios da gênesis primordial.
Sou daqueles que crêem no refresco depois do choro e do ranger de dentes.
Um abraço!

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