domingo, agosto 31, 2008

Canto da cigarra que teima...

Sou o linho estendido sobre a pedra. Como mesa.
E o suor dos rostos em círculo. Como mito. (Sei agora...)
E o pão avaro.
E o rito das mãos de boca em boca
E as gargantas ressequidas.
Sou o vinho...

Sou a sombra. E a gota de água.
E a agitação do freixo. Sou a canícula e a raiva.
E a boina basca descaída sobre os olhos
E a precária sesta na aragem do dia.

Sou os tordos espantados de meus olhos
E a voz do amo
E o sol que já declina...

Sou os corpos debruçados sobre a terra
E o crepitar do caule e da espiga.
Sou o fio da revolta
Que não sabe ainda...

E neste horizonte de mágoa
Sou sopro de bandeira desbotada
Sou esta linha quebrada que explode
E me incendeia...

Sou este signo vazio de nada
E o canto das cigarras que teima...

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Grato pela vossa presença amiga.
Beijos e abraços

terça-feira, agosto 19, 2008

Uma outra perspectiva da guerra...

O urso ferido (e provocado) mostra as garras. Bush franze o sobre olho e engole em seco (que remédio!...). A senhora Rice exibe toillets pelas capitais da “velha Europa” e sai com as mãos a abanar. A NATO reúne na emergência. E a velha sabedoria parece ter travado a retórica belicista. E até o nosso beatífico Guterres, de discurso encomendado, por lá, seraficamente, ostenta sua capa humanitária...

Bom seria que todo este afã mediático não ignorasse o Povo da Geórgia. E o que pensa dos seus dirigentes, nesta ocorrência. Deixo-vos uma outra perspectiva...

Comunicado do Comité de Paz da Geórgia

“A Geórgia foi lançada em mais uma sangrenta situação de caos. Na terra georgiana deflagrou com nova força uma guerra fratricida. Para grande infelicidade nossa, não surtiram efeito os alertas do Comité da Paz da Geórgia e de personalidades progressistas da Geórgia sobre o carácter pernicioso da militarização do país e sobre o perigo de uma política pró-fascista e nacionalista. As autoridades da Geórgia, mais uma vez, organizaram uma guerra sangrenta, sentido o apoio de alguns países ocidentais e de organizações regionais e internacionais.

A vergonha vertida pelos actuais detentores do poder sobre o povo georgiano demorará dezenas de anos a limpar.

O exército georgiano, armado e treinado por instrutores americanos e utilizando armamento também americano, submeteu a uma bárbara destruição a cidade de Tskhinvali. Os bombardeamentos mataram civis, ossétios, irmãs e irmãos nossos, crianças, mulheres, idosos. Morreram mais de dois mil habitantes de Tskhinvali e dos arredores. Morreram igualmente centenas de civis de nacionalidade georgiana, tanto na zona do conflito, como por todo o território da Geórgia.

O Comité da Paz da Geórgia expressa profundas condolências aos familiares e amigos dos falecidos. Toda a responsabilidade por mais esta guerra fratricida, por milhares de crianças, mulheres e idosos mortos, pelos habitantes da Ossétia do Sul e da Geórgia cabe exclusivamente ao actual presidente, ao Parlamento e ao governo da Geórgia. A irresponsabilidade e o aventureiríssimo do regime de Saakachvili não têm limites. O presidente da Geórgia e a sua equipa, sem dúvida, são criminosos e devem ser responsabilizados.

O Comité da Paz da Geórgia, juntamente com todos os partidos progressistas e movimentos sociais da Geórgia, vai bater-se para que os organizadores deste monstruoso genocídio tenham uma punição severa e legítima. O Comité da Paz da Geórgia declara e pede à ampla opinião pública que não identifique a actual direcção georgiana com os povos da Geórgia, com a nação georgiana e apela a que apoie o povo georgiano na luta contra o regime criminoso de Saakachvili.

Apelamos a que todas as forças políticas da Geórgia, os movimentos sociais, o povo da Geórgia se unam para libertar o país do regime antipopular pró-fascista de Saakachvili!...”


O Comité da Paz da Geórgia

Tbilissi, 11 de Agosto de 2008

sexta-feira, agosto 15, 2008

Bilhete Postal...

Na ardência da palavra
A pele gretada, o sulco sobre a terra.
Mater no húmus da espera
O som da semente. O odor lento.
O caminho. Esta fraga de dor
Despenhada sobre o tempo...

Apenas a águia (ou o corvo branco)
Se atrevem na voragem
Deste horizonte....

Quem colhe a manhã que teima
Na brisa dos dedos?

Quem de tão néscio se obriga
A caminhar ignorante da água
E do lume no interior da pedra?
Quem nesta brida se atreve além
Do curto olhar do dia?

Como se chama fosse o voo da ave
Saturnina...

domingo, agosto 03, 2008

Play time...

"A lei do tempo como valor de troca e como força produtiva não se imobiliza no limiar do lazer, como se este escapasse miraculosamente a todos os constrangimentos que regulam o tempo de trabalho. As leis do sistema de produção capitalista nunca entram em férias. Reproduzem o tempo como força produtiva, incessantemente, por toda a parte nas estradas, nas praias, nos clubes.

O aparente desdobramento em tempo de trabalho e tempo de lazer - inaugurando este a esfera transcendente da liberdade - constitui um mito. (...) A orquestração gigantesca do tempo anual em “ano solar” e “ano social”, com as férias (...) este gigantesco fluxo e refluxo só na aparência se revela como ritmo de estação.

É um mecanismo funcional, não um ritmo (sucessão dos momentos naturais de um ciclo). Constitui o mesmo processo sistemático que se desdobra em tempo de trabalho e tempo de lazer. (...)

Na ideologia própria do lazer, o repouso, o descanso, a evasão e a distracção talvez sejam “necessidades”, mas não definem por si mesmas a exigência própria do lazer, que é o consumo do tempo. O tempo livre consiste talvez em actividade lúdica (...), mas é (deveria ser), sobretudo a liberdade de perder tempo e, eventualmente, de o “matar” e dispensar, em pura perda.

Não basta, portanto, afirmar que o lazer está “alienado” porque se reduz ao tempo necessário para a reconstituição da força de trabalho. A “alienação” do lazer é mais profunda: não diz respeito à directa subordinação ao tempo de trabalho, encontra-se ligado à própria impossibilidade de se poder perder tempo.

O verdadeiro valor de uso do tempo, que o lazer procura desesperadamente restituir, consiste em perder-se tempo. As férias constituem busca de um tempo que se possa perder no pleno sentido da palavra, sem que tal perda seja possível pois que entra, por sua vez, em processo de cálculo, acabando o tempo (simultaneamente) de qualquer modo por ser “ganho”.

No nosso sistema de produção e de forças produtivas, é possível ganhar sempre o tempo: esta fatalidade pesa tanto no lazer como no trabalho. Só se consegue "fazer-valer" o tempo, ainda que seja utilizando-o de maneira espectacularmente oca.

O tempo livre das férias é a propriedade privada do veraneante, objecto e bem por ele ganho com o suor do ano, por ele possuído e de que frui à maneira do que sucede com os restantes objectos de consumo- não sendo capaz de se desapossar dele para o dar e sacrificar, para o destinar à disponibilidade total, ausência de tempo que constituiria a verdadeira liberdade.

O Vereanante está cravado ao “seu” tempo como Prometeu ao rochedo, preso ao mito prometeico do tempo como força produtiva ...

Sísifo, Tântalo, Prometeu - todos os mitos existenciais da “absurda liberdade” caracterizam bastante bem o veraneante e todos os seus esforços desesperados para mimar a "vacância", a gratuidade, a despossessão total, o vazio, a perda de si mesmo e o seu tempo que não pode atingir - porque como o objecto foi assumido numa dimensão definitivamente objectivada do (seu) tempo "livre".

Vivemos numa época em que os homens jamais conseguirão perder tempo suficiente para esconjurar a fatalidade de passarem a vida a ganhá-lo. Não nos desembaraçamos do tempo como da roupa interior. Também é impossível matá-lo ou perdê-lo, juntamente com o dinheiro, porque ambos constituem a própria expressão do sistema do valor de troca.

Na dimensão simbólica, o dinheiro e o ouro surgem como excrescência. O mesmo se passa com o tempo objectivado. Na realidade, é muito raro e, no actual sistema, logicamente impossível restituir o dinheiro e o tempo à sua função “arcaica”(...). Na ordem do cálculo e do capital, dá-se de certa maneira precisamente o inverso: objectivados e manipulados por ela como valor de troca, fomos nós que nos tornámos o excrescência/excremento do dinheiro e do tempo...

Por consequência, pese embora a ficção de liberdade no lazer, por toda a parte se descobre a impossibilidade lógica do tempo “livre”, existindo apenas o tempo constrangido. O tempo do consumo é o da produção. Revela-se como tal, na medida em que se reduz a simples parêntese “evasivo” no ciclo da produção.

Diga-se que esta complementaridade funcional (diversamente partilhada segundo as classes sociais) não constitui a sua determinação essencial. O lazer é forçado na medida em que, por detrás da aparente gratuidade, reproduz fielmente todos os constrangimentos mentais e práticos do tempo produtivo e da quotidianidade escravizada".(...)

JEAN BAUDRILLARD - in "A Sociedade de Consumo" - Edições 70 - Arte&Comunicação
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Boas Férias!

Desperdicem bem o tempo. Nessa "absurda liberdade" da ilusão do tempo livre...

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...