terça-feira, abril 29, 2008

Aos que vão nascer...

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
Revela insensibilidade. Os que riem
Riem porque ainda não receberam
A terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
Não estará já disponível para os amigos
Em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
Do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (Quando a sorte me faltar, estou perdido)
Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando roubo ao faminto o que como e
O meu copo de água falta a quem morre de sede? E apesar disso eu como e bebo.
(...)
É verdade, vivo em tempo de trevas!

Cheguei às cidades nos tempos da desordem. Quando aí grassava a fome
Vim viver com os homens nos tempos da revolta. E com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
(...)

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer.
Mas os senhores do mundo
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta estava muito longe
Claramente visível, mas nem por isso ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

Vós, que surgireis do dilúvio
Em que nós nos afundámos
Quando falardes das nossas fraquezas
Lembrai-vos
Também do tempo de trevas
A que escapastes.

Pois nós (...)
Atravessámos as lutas de classe, desesperados
Ao ver só injustiça e não revolta.

E afinal sabemos:
Também o ódio contra a baixeza
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Torna a voz rouca. Ah, nós
Que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade
Não soubemos afinal ser amáveis.

Mas vós, quando chegar a hora
De o homem ajudar o homem
Lembrai-vos de nós
Com indulgência.

Bertolt Brecht

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Sejamos então a terra. A semente. O húmus...
Viva o 1º de Maio!...

12 comentários:

mdsol disse...

Excelente autor. Sempre gostei do Brecht. Boa lembrança a tua!
Herético: deixei-te uma resposta tardia algures na mimnha marquise. Quando puderes dá uma volta lá [está num dos post recentes que comentaste]. acho eu que tevais rir...

Maria disse...

Excelente Brecht!
Excelente post!
Obrigada...

Beijos, beijos

Unknown disse...

Há tantos anos, que li estas palavras!...
Tal como a Maria do Sol, também eu, sempre admirei o Brecht.
Autor maldito, cá na nossa terrinha, antes do 25 de Abril...

Este poema tem um final admirável!
Quando chegará a hora do homem ajudar o homem?
Porque é tão bonita esta "imagem"...
Quando chegará essa hora?
As trevas do tempo
continuam, de outra maneira,
mais sofisticada,
mais dissimulada.

Mas, enquanto houver homens...
... podemos pensar...
... será possível...
... a hora do homem ajudar
o homem?
Era bom acreditar.

[Beijo]

Oliver Pickwick disse...

Não sei quanto a você, Herético, mas, acredito que os caras antigos eram mais versáteis que os atuais.
Não conhecia este poema grandioso.
Um abraço!

Eme disse...

De o homem ajudar o homem..

um trecho que devia ser decorado pela humanidade.

1º de maio. o bom dele é que vou dormir mais uma hora. e talvez me nasça a inspiração já que tem de nascer qualquer coisa ;)

Beijo de abril ainda

bettips disse...

Porque comecei a ler Brecht e o senti, imediato vivo, tão actual.
Lembrai-vos de nós, dizemos nós, com indulgência. Os que caíram, os que se levantaram.
Que VIVA o que podemos hoje!!!
Viva o "Dia do Trabalhador"!

Jorge Castro (OrCa) disse...

Brecht, tal como Maio, têm ambos esta característica extraordinária de voltarem a nós, ciclicamente, e esse imenso despudor de serem sempre actuais.

Um grande abraço.

Graça Pires disse...

É sempre bom recordar Brecht. Viva o 1º de Maio!
Um abraço.

M. disse...

Belíssimo poema!

Maria Laura disse...

Brecht e a sua permanente actualidade. Um excelente poema. Chegará " a hora de o homem ajudar o homem?"

MS disse...

sempre tão actual, Brecht!

... como os tempos não evoluíram... como o homem continua sem ajudar o homem...

E os que nascem? Como 'ampará-los?
:(

Um beijo

... sensibilizada pelo teu olhar em 'fragmentos'!
É sempre bom acreditar...

Sandra Fonseca disse...

Execelente o post. Texto atualíssimo, como sempre o são, dos grandes autores.
Um abraço.

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