domingo, dezembro 28, 2008

Granítica esperança...

Colapsam as palavras e despenham-se na voragem
Das paisagens geladas. Lonjuras que apenas os ventos
Ousam. Pressente-se o grito perdido das fragas
Em simulacro de dor.

Vã a tentativa para além do azul coalhado
E das farripas de bruma que incendeiam os vales
Como bocas sinuosas de dragões em danças guerreiras.
Ou monges brancos em penitências aladas no milagre
De todas as lembranças...

Fantasmagorias soltas debruçadas sobre as casas
Perdidas. Solidões de cabras balindo a urze
E as magras tetas. Ventres que se abrem nas encostas
Em presépios de abandono... Lá no alto a íngreme
Penitência das dores e de todas as promessas.
Pagãos que somos.

Guardamos o inesperado. E a rocha parideira.
E colhemos no restrito núcleo de afectos o gosto
Do vinho que bebemos. Confortados. E a água
Que calamos. E agitação febril dos olhos.
E dos sonhos.

Imensos na granítica esperança tatuada no rosto
Vivo dos homens.

Em cada esquina de solidariedade e luta...

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Votos de feliz Ano Novo.
Com esperança em melhores dias. Apesar de tudo...

sábado, dezembro 20, 2008

Feliz Natal...

“Eis vens tu, velha festa mansa,
e ao meu peito de outrora comprimida
queres ser consolada. Queres que te diga:
Tu és ainda a ventura de outrora
e eu de novo criança escura e abro os olhos calmos em que brilhas.
Sim, por certo. Mas então quando eu o era e bela me assustavas,
quando as portas saltavam - e a tua tentação maravilhosa
já não reprimível por mais tempo
se atirava sobre mim como o perigo
de alegrias impetuosas: mesmo então, sentia-te eu a ti?

Em volta de cada objecto a que lançava a mão,
havia brilho do teu brilho. Mas, de repente,
dele e 'da mão surgia uma coisa nova, coisa tímida;
vulgar quase, chamada posse. E eu assustava-me.
Oh, como tudo, antes de eu tocar, jazia puro e leve nos meus olhos!
E mesmo aliciando à possessão,
inda o não era. Inda não lhe aderia
o meu agir; a minha incompreensão;
o meu querer que fosse alguma coisa que não era.

Era ainda clara
e aclarava os olhos.
Não caia ainda, não rolava,
inda não era a coisa contraditória.
E eu ficava hesitante em fre
nte ao milagre de não possuir”...

Rainer Maria Rilke – in "Poemas" – Atlântica Editora – 1958
Tradução Paulo Quintela
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Feliz Natal!...

Tem sido um privilégio a vossa presença amiga.
Até breve.
Beijos e Abraços
BachOratoriaNatal

terça-feira, dezembro 16, 2008

E a Grécia aqui tão perto...(ou tão longe!)

“É toda a Grécia e não apenas o seu governo que vive um dos mais difíceis momentos da sua história contemporânea. Praticamente ninguém chega a compreender o que realmente se passa nas ruas da capital e outros grandes centros urbanos, qual é a verdadeira razão dos protestos espontâneos, desta guerrilha urbana, de que os jovens são os principais actores.

E quase ninguém se interessa por saber quais sejam as causas mais profundas que levam milhares de jovens, a enfrentar, durante dias seguidos, as forças especiais da polícia(...). Como é possível? Interroga-se muita gente (...).

É, em grande parte erróneo, sustentar que estes acontecimentos são resultado da crise económica mundial. É impreciso porque a economia grega sofre, desde há bastante tempo de falta de investimentos, de privatização de empresas públicas, de flexibilidade laboral, que leva ao crescimento cada vez maior da taxa de desemprego e o aumento do custo de vida. A Grécia faz parte da zona euro, mas sobrevive graças, em boa parte, a uma economia subterrânea muito importante.

Esta tese perde muito sentido se se considerar que os jovens em revolta são menores ou estudantes universitários que não estão, em todo o caso, submetidos de maneira directa às consequências da crise económica. Pelo contrário, são muitas vezes vítimas do consumismo. No seio da contestação em Atenas está também a “geração dos 700 euros” que, em todo o caso, representa apenas uma minoria no movimento de jovens.

O que mais impressiona nisto tudo é a reacção do mundo político. A surpresa das primeiras horas foi acompanhada de declarações banais(...). Como se o despedimento massivo de milhares de trabalhadores, o sistema anacrónico de ensino ou a reforma da Educação pretendida pelo governo não fossem, para eles próprios a raiz da violência (...).

Como se não fosse igualmente violência ... a violência de uma "televisão-lixo", os escândalos e a corrupção, o afundamento dos sistema de saúde, de pensões, a perda de milhares de jovens na idade de Alexis (o jovem assinado pela polícia) todos os anos, em virtude de acidentes provocados em estradas, como não se vêem em países do terceiro mundo.

Para algumas pessoas a morte de Alexis não justifica a destruição nas ruas de Atenas (...) “Um acontecimento trágico como a morte de Alexis não pode ser utilizado como pretexto para desencadear uma violência cruel” – disse o primeiro-ministro grego, ameaçando com a aplicação severa da lei.

Karamanlis engrossou a voz face aos jovens. O dirigente socialista Giorgos Papandreou, ainda que bem mais prudente nas palavras, está no mesmo comprimento de onda, quando condena as desordens e os ataques ao “Estado de direito”, culpando os conservadores pelos acontecimentos. O jogo político, o duelo bipartido continua com as declarações convenientes, sem que ninguém no mundo político ponha a questão: porquê esta contestação? (...).

A raiva dos estudantes e evidentemente devida ao assassinato do jovem Alexis. (...) Mas a cólera de Atenas é, sobretudo, devida em grande parte por ausência de um futuro digno, pelo desemprego que bate à porta, antes mesmo do diploma, agora que o presente não se apresenta com saída, marcado por um nível de instrução vazio e a degenerescência da relação entre o estudante e o ensino.

Sem falar na atitude da policia perante os jovens. Os insultos, os controles, os abusos de poder, os maus-tratos são o dia a dia, num país de estado policial com longa tradição, herdeiro da direita mais dura (...).

A amplitude dos confrontos é também devida à falta de um plano por parte das forças da polícia, que estão presentes e ausentes ao mesmo tempo. As forças da polícia anti motim atacaram com gás lacrimogéneo, mas a dor e indignação eram tão grandes e fluxo de estudantes que se manifestavam espontaneamente tão importante que a situação se tornou incontrolável. Era evidente que as forças da ordem estavam, de acordo com as palavras de seus dirigentes, numa posição “defensiva”, demonstrando assim indirectamente a “má consciência” pelo governo pelo assassinato do adolescente.

A polícia não conseguiu defender nem os símbolos da globalização como bancos, MacDonnald´s, boutiques de luxo, edifícios do governo, nem muito menos armazéns e lojas daqueles que se encontravam a beira da falência, por causa da crise económica. Assim, se a reacção dos jovens gregos é cegueira compreensível, a da polícia e a do governo de Atenas e também cegueira, mas sobretudo cegueira incompreensível”.


Pavlos Nerantzis, in “il manifesto”, 10 Dezembro 2008

(Traduzido do francês)
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Entretanto, jovens gregos começaram a armazenar pedras, rochas e pedaços de mármore trazidos de Salónica, Corfu e Creta e estão a vendê-las - três pedras por um euro - a manifestantes, (cujos pais vivem na opulência ao estilo de Hollywood), mas unidos, aos jovens desempregados, pelo desejo comum de as arremessar à polícia.

Confesso-me, apesar de avó babado, tentado a comprar uma meia dúzia de pedras (virtuais, está bom de ver...)

É que os mesmos jornais que me trazem estas notícias são os mesmos que referem aumentar, entre nós, o número de jovens e adolescentes que se auto mutilam. Uma violência mais caseira, bem de acordo com os nossos brandos costumes...

Valha-me D. Sebastião (alegre), na sua imensa glória de salvar a Pátria. Sem insurreições. Nem pedras, naturalmente...

Que a revolução também cansa...

sábado, dezembro 13, 2008

Outras Personagens - Baltazar Gárzon

Tive o privilégio de assistir, passado dia 11 de Dezembro, na Casa do Alentejo, em Lisboa, a uma conferência proferida pelo juiz espanhol Baltazar Gárzon, promovida pela Fundação José Saramago, comemorativa dos 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Para os mais distraídos, direi que o juiz Baltazar Gárzon tem um brilhante curriculum como magistrado ao serviço das causas mais nobres, como defensor das vítimas de crimes de genocídio e crimes contra a humanidade, promovendo reabilitação moral e social das vítimas e movendo perseguição jurídica contra os seus verdugos.

Dos processos mais conhecidos, ressaltam a prisão e julgamento do ditador Augusto Pinochet e, presentemente, o processo em curso sobre as vítimas do franquismo, entre as quais o poeta andaluz Garcia Lorca que, como se sabe, foi fuzilado às mãos do fascismo espanhol, acrescentando o seu nome ilustre a milhares de outros.

Claro que é sempre gratificante poder ver uma inteligência luminosa em pleno voo, sem o mínimo de vedetismo ou afectação, em dias em que proliferam tantos ídolos de barro, ávidos de protagonismo social. Mas para além da individualidade e da empatia que estabeleceu com as largas dezenas pessoas presentes, quero partilhar convosco duas ou três ideias, que especialmente me impressionaram.

Que os tempos vão difíceis para a causa dos direitos humanos, é uma realidade que todos sabemos. Porventura, também não haverá dúvidas entre nós que, cada violação dos direitos do homem, no mundo actual, é sempre percorrida pelos poderosos interesses económicos mundiais, que manietam os Estados e corrompem pessoas e instituições.

Mas é bom ver estas convicções reafirmadas na palavra de alguém que, com a autoridade (e o risco) da sua vida, tem confrontado os liames negros desse conluio. Com a superioridade moral de quem a defesa dos “direitos do homem” não pode ser mera proclamação retórica, mas antes um compromisso prático de vida. E, por isso, o seu escrúpulo e a decência em não ultrapassar a fronteira da iniquidade, mesmo quando estão na mira os mais ferozes verdugos, respeitando neles os direitos e a sua (in)dignidade homens.

São assim os homens íntegros. Não promovem o “justicialismo”, mas perseguem a realização da Justiça! Sem arrogâncias, nem idealismos deslocados. Mas com a determinação de quem sabe que o combate jurídico-penal, em defesa dos direitos do homem, não é mais que o culminar de outros combates cívicos e políticos ao alcance de cidadãos comuns. Que, porém, não cedem, nem se calam...

Como as “Mães da Praça de Maio”, na Argentina, que durante anos a fio, mantiveram permanentes manifestações públicas, para exigirem, aos poderes políticos, notícias de seus filhos desaparecidos durante a ditadura militar naquele País.

E que, nesta reunião, se soube, pela voz afectuosa de Pilar del Rio, que o juiz Baltazar Gárzon, homenageou, fazendo com elas, na Praça de Maio, o mesmo percurso de dor e luto...

Há momentos, assim, reconfortantes. Que nos apaziguam e nos reconciliam com a Humanidade. Por sabermos que, para além de nós e do cinzentismo da realidade imediata que nos cerca, há homens e mulheres determinados que não se cansam, nem cedem na luta por uma Humanidade mais livre e justa...

Foi para mim, nesta quadra, uma íntima e pessoalíssima prenda de Natal, acreditem-me...

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Palavras Outras - Guy Debord



1 - “O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.”

2 – “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação”.

3 – “O espectáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efectiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objectivou.”

4 – “O espectáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objectivação infiel dos produtores”.

5 – “A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do “ser” em “ter”. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do “ter” em “parecer” de que todo o “ter” efectivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, directamente dependente do poderio social, por ele moldada. Somente nisto em que ela não é, lhe é permitido aparecer.”


Guy Debord – in “Sociedade do Espectáculo”

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Rito(s) de passagem...

Talvez este regresso seja voo de milhafre
Planando contra o vento.
Ou estultícia em filtrar o tempo
Em meus dedos...

Talvez seja vertigem. Talvez pequenas coisas
Em profusão descendo como os braços do salgueiro.
Ou moinhos em canto d´água.
Ou a pedra da soleira...

Talvez o eremitério seja a brusca passagem das horas
Já passadas. E murmúrio de oração em lábios já finados...
Talvez mulheres de negro embiocadas
Penélopes sem viagens. E epopeias de silêncio...

Talvez as cálidas mãos dos homens. Agora
Pousadas sobre a mesa e o pão repartido.
E a criança atónita espreitando o ritual do vinho
Nas gargantas ressequidas.

E o delírio da festa. E as colheitas...

Talvez os corredores da memória
Sejam espaço afadigado em estertor de ave
Já sem ninho. E que no entanto teima o calor das penas...

Talvez o vento se solte em novas profecias.

E todos os rostos venham em coro
Entoar bênçãos em teu nome.

António...

segunda-feira, dezembro 01, 2008

deixo que os rios secos...

deixo que os rios secos e as tempestades de sons ausentes
na memória de outros Maios se inscrevam na saliva
das palavras balbuciadas em que digo amor
em fim de tarde...

assim administrando amoras tardias que recolho
em círculos de sol de lábios ciosos - gestos inesperados
como frutos desprendendo-se de maduros -
ou chuvas de deserto...

viajo caminheiro sem pressa recostado nas bermas
celebrando as sombras e as festivas giestas outonais
sorvendo o mel das silvas soltando revoadas de
tordos espantados que riscam o abismo dos olhos...

e aí me perco - na entrega matizada de cores quentes
nos odores persistentes na humidade translúcida de beijos
na generosidade dos seios no declive dos lábios -
cio de colheitas na sofreguidão dos cestos antes das uvas...

ondas desbragadas que subjugam - ferida aberta ou lava
ou lume que consome - e festa que explode
em clarão de madrugada...

quinta-feira, novembro 27, 2008

THOMAS JEFFERSON (1802)




Fantástico!... Como há 200 anos se previam as desgraças actuais!...
Este tipo era capaz de ser "comuna", não vos parece? rss

Bom fim de semana!

Beijos e abraços. Até já...

segunda-feira, novembro 24, 2008

Pensar o impensável...



“Tudo, portanto, era possível. Uma intervenção financeira maciça do Estado. O esquecimento das obrigações do Pacto de Estabilidade Europeu. Uma capitulação dos bancos centrais ante a urgência de uma retoma. A condenação dos paraísos fiscais. Tudo era possível porque se impunha salvar os bancos.

Durante trinta anos, o mais leve esboço de qualquer alteração dos fundamentos da ordem liberal, para, por exemplo, melhorar as condições de vida da maioria da população, teve contudo o mesmo tipo de resposta: isso é tudo muito arcaico; então não sabem que o Muro de Berlim já caiu?

E durante trinta anos a “reforma” foi aplicada, mas noutro sentido. No de uma revolução conservadora que entregou à finança fatias cada vez mais espessas e suculentas do bem comum, como os serviços públicos privatizados e metamorfoseados em máquinas de cash “criadoras de valor” para os accionistas. No duma liberalização das trocas comerciais que atacou os salários e a protecção social, obrigando dezenas de milhões de pessoas a endividarem-se para preservar o seu poder de compra, a “investirem” (na Bolsa, em seguros) para garantir a educação, prever a doença, preparar a aposentação.

Desse modo, a deflação salarial e a erosão das protecções sociais criaram e fortaleceram a desmesura financeira. Porque a criação do risco levou-a a proteger-se contra ele. A bolha especulativa apoderou-se muito depressa da habitação, que transformou em investimento. De forma incessante, voltou a inchar com o hélio ideológico do pensamento de mercado. E as mentalidades mudaram, mais individualistas, mais calculadoras, menos solidárias. A bancarrota de 2008 não é pois essencialmente de carácter técnico, susceptível de ser melhorada com paliativos como a “moralização” ou o fim dos “abusos”. É todo um sistema que cai por terra...

Em seu redor já se afanam os que esperam reerguê-lo, atamancá-lo, dar-lhe verniz, para no futuro próximo ele infligir à sociedade uma qualquer nova brincadeira de mau gosto. Os curandeiros que se fingem indignados com as (in)consequências do liberalismo são os mesmos que lhe forneceram todos os afrodisíacos - orçamentais, regulamentadores, fiscais, ideológicos - graças aos quais ele despendeu sem conta nem medida. Deveriam considerar-se agora desacreditados. Mas sabem que todo um exército político e mediático vai dedicar-se a branqueá-los.

Deste modo, Gordon Brown, o antigo ministro britânico das Finanças, cuja primeira iniciativa consistiu em conceder a “independência” ao Banco de Inglaterra, José Manuel Durão Barroso, que preside a uma Comissão Europeia obcecada com a “concorrência”, Nicolas Sarkozy, artífice do “escudo fiscal”, do trabalho ao domingo, da privatização dos serviços postais, aplicam-se desde já, segundo parece, a “refundar” o capitalismo...

O descaramento destes políticos decorre de uma estranha ausência. Pois onde se encontra a esquerda? A ambição da oficial - a que acompanhou o liberalismo, que desregulamentou a finança durante a presidência do democrata Bill Clinton, que desanexou os salários, com François Mitterand, e depois se pôs a privatizar, com Lionel Jospin e Dominique Strauss-Kahn, que cortou à machadada os subsídios destinados aos desempregados, com Gerhard Schroder, - consiste apenas, obviamente, em virar o mais depressa possível a página de uma “crise” de que é co-responsável...

Sem dúvida. Mas, e a outra esquerda? Poderá ela, num momento destes, limitar-se a desenferrujar os seus projectos mais modestos, úteis mas tão tímidos, sobre a Taxa Tobin, o aumento do salário mínimo, um “novo Breton Woods” e quintas eólicas? Durante as décadas keynesianas, a direita liberal pensou o impensável, tirando proveito de uma grande crise para o impor.

Com efeito, em 1949, Friedrich Hayek, padrinho intelectual da corrente que deu à luz Ronald Reagan e Margaret Thatcher, explicou-lhe o seguinte: “A principal lição que um liberal consequente deve tirar do êxito dos socialistas é esta: a coragem de serem utópico, que ( ... ) torna possível todos os dias o que ainda recentemente parecia irrealizável”.

Assim sendo, quem proporá que se ponha em causa o âmago do sistema e o comércio livre? “Utópico”?!... Mas se agora tudo é possível, tratando-se dos bancos!...”

Serge Halimi – “Le Monde Diplomatique” – Edição Portuguesa – nº25 – IIª Série – Novembro 2008

quinta-feira, novembro 20, 2008

Fernando Pessoa - um inédito.

“Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito. Que pode ter comigo o que não começa nem acaba? Não creio no infinito, não creio na eternidade.

Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba E que agora e antes d'isso ha absolutamente nada.

Creio que o tempo tem um princípio e tem um fim,
E que antes e depois d'isso não havia tempo.
Porque ha de ser isto falso? Falso é fallar de infinitos
Como se soubéssemos o que são de os podermos entender. Não: tudo é uma quantidade de cousas.

Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousa”.


Alberto Caeiro

In – “Razão Activa” - Nov./08 – Boletim da Fundação Internacional Racionalista
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Bom fim-de-semana...
Vou ali, já venho! Breve, breve...

Beijos e abraços

domingo, novembro 16, 2008

Palavra inóspita...

Talvez o caos seja apenas a rosácea
Antes do fogo que os dedos tecem no cinzel
E a pedra a absurda permanência da forma
Em si fechada...

Talvez a poalha do tempo fecunde novas cidades
E as ínfimas coisas se ordenem e expludam
Como corolas em delírios de cristal...

Talvez a vontade dos homens seja excesso
E rasgue as veias das galáxias
E o surdo rugir do mundo inunde a consciência
Dos escravos...

Talvez a Palavra seja inóspita
E os hinos sejam derrocada das muralhas...

quarta-feira, novembro 12, 2008

Palavras Outras - "Amanhã..."

"Sabemos menos do tempo do que o tempo sabe de nós. Mas o menos que dele sabemos já chega para sabermos que os próximos dias, os próximos meses, os próximos anos vão ser o tempo de uma grande insónia cercada pela noite que cresce. Hora a hora, minuto a minuto, surgem, por todo o lado, os indícios de uma desgraça que avança e cintilam os sinais de um pânico que corre.

Não são apenas as bolsas que caem, nem o desemprego que aumenta, nem as dívidas que crescem, nem os bancos que se afundam. É, antes disso e depois disso, a imagem fúnebre de um sistema financeiro que se devora a si próprio, devorando-nos e devorando a esperança, sem a qual a vida é empurrada para a morte.

Nesta “epopeia americana” que terminou em tragédia mundial, George W. Bush quis ser Aquiles, mas acabou num “Édipo de Guantánamo” que não conseguiu vencer a esfinge chamada Bin Laden (mas Gore Vidal diz: “Não precisamos de Freud. quando-se trata de Calígula”); Dick Cheney é um Creonte de petrolífera; Alan Greenspan, uma Medeia de Wall Street; John McCain, um Pátroclo tardio; Sarah Palin, uma Clitmnestra de casino (ou será Hécuba?). E Barack Obama é o Ulisses de uma Ítaca em chamas, com o mundo transformando na Penélope que o esperava.

E por todo o lado ouve-se o grito de Antígona a clamar pela justiça que desobedeça à injustiça que manda. Aqueles que durante anos aplaudiram, de Washington a Bagdade, a representação da peça, participaram no elenco, escolheram o teatro, serviram de ponto, desenharam o cenário, fizeram os figurinos, teceram o enredo, são agora os mesmos que se fingem surpreendidos com o desfecho: um desastre que começou a revelar-se na sua enormidade e que eles olham como se estivessem a ver o munido ao contrário.

Por isso, andam cada vez mais de cabeça para baixo para tentarem vê-lo direito. Num tempo tão despossuído de si mesmo, é natural que já nem haja consciência da tragédia que por todo o lado nos envolve como o ar que respiramos. E essa inconsciência, essa ignorância, essa irresponsabilidade são o mais trágico do trágico.

O tempo sabe mais de nós do que nós sabemos do tempo. E o que ele sabe de nós diz-nos que os próximos anos vão ser terríveis: de incerteza, de insegurança, de perigo, de medo, de ansiedade. Aqueles que, ainda há pouco, se vestiam de um optimismo triunfante e calculista cobrem-se agora de um pessimismo cobarde e assustado. Sabemos que, como é costume, quem vai sofrer mais são os mais inocentes, aqueles que têm menos culpas. Sabemos que os autores do desastre são os que estão a recato dele e dos seus horrores, sem consciência, sem vergonha, sem compaixão - e com dinheiro inesgotável.

Sabemos que a vida será um alfabeto de dor, com o qual escreveremos o texto da mudança. Sabemos que voltaremos a passar por essa “confusão cruel e inútil” de, que um dia falava George Steiner falando da História. Quando esteve em Lisboa, da última vez, o autor de “Errata” disse, sobre o que se estava a passar, palavras de que ninguém quis ouvir nem o som, nem o sentido. Ele afirmou: “Espanta-me que os pobres não se revoltem...”

E acrescentou que estranhava, quando todas as manhãs abria o jornal, não ver lá escrito que “tinham assassinado um daqueles empresários que encerram fábricas e depois se metem nos seus jactos privados para ir passar férias a Barbados”. Steiner ecoa neste seu comentário violento o antigo clamor dos profetas judeus do Antigo Testamento, que faziam da cólera uma ameaça e só depois um presságio.

Hoje, o vento mudou e tudo muda com ele. Lemos os jornais de todo o mundo e percebemos que cada jornalista passou a ser, mesmo sem o saber ou sem o querer, um São João que, nos seus vaticínios, promete um Apocalipse que não surgirá, como o outro, no fim dos tempos: este apocalipse é iminente, instantâneo, vertiginoso. Virá amanhã, logo à tarde, agora mesmo.

Mas, com à inconstância de tudo, não é impossível que um dia destes se anuncie o regresso ao Génesis primordial, onde do caos se gerará a luz e, sob ela, se criará de novo o mundo"


José Manuel Santos – in Suplemento “Actual” – Jornal “Expresso” de 8.11.08

segunda-feira, novembro 10, 2008

Sim, podemos!...

Que o gesto seja faúlha na bigorna
E prenúncio da batalha
Por agora...

E o canto clamor dos homens
Larva ainda...

Que o surdo rumor do Mundo e os dias
Sejam a inquietante superação das horas
Na esperança breve das coisas
Que colhemos...

E a dissonante música seja eco na anca dos escravos
E os punhos sejam tela no olhar
Dos timoratos...

E que o Tempo germine
E que os sonhos tenham asas...

E então. Sim...
Podemos!...

sexta-feira, novembro 07, 2008

SEARA NOVA ...




Editorial - Portugal e a crise...

“A crise financeira no coração do sistema capitalista mundial é o mais marcante acontecimento do momento presente. A enorme injecção de dinheiros dos contribuintes norte-americanos na Wall Street, as falências de grandes bancos e outras instituições de crédito que já se verificaram nos EUA, as falências e ameaças de outras que ocorrem nalguns países europeus, as “nacionalizações” de emergência contrariando todos os dogmas neoliberais que os respectivos governos defendiam, o “aqui d' el rei” dos grandes da UE, são tímidas expressões da dimensão de tal crise.

É incontestável que a crise que se desenvolve no sistema capitalista tem a sua principal manifestação na esfera financeira, mediante a financeirização da vida económica nesta sua fase da globalização. Mas é ingenuidade situar a crise apenas no sistema financeiro ou atribuir a sua origem à ineficácia dos instrumentos de regulação ou à ganância do capital financeiro. Sem dúvida que aqueles falharam rotundamente e que é chocante ver as fortunas pessoais fabulosas que alguns gestores acumularam ou os elevados lucros especulativos do capital financeiro, umas e outros frequentemente a coberto de fraudes contabilísticas.

As crises capitalistas têm quase sempre a sua primeira manifestação na esfera financeira. Mas se agora olharmos não apenas a realidade superficial, descortinamos que se vem acentuando uma típica crise de superprodução, em que os mecanismos da reprodução capitalista foram alimentados por um artificial crescimento do mercado, principalmente através de uma desmedida e especulativa expansão do crédito.

Que dimensão vai atingir esta crise? Será que as anunciadas injecções de dinheiros públicos nas instituições de crédito privadas serão suficientes para normalizar o sistema financeiro mundial e os dos países mais afectados? Que áreas geográficas serão mais atingidas, quando a Europa parece estar apenas na primeira fase de contaminação e as designadas potências emergentes parecem menos contaminadas?

Num mundo tão globalizado como o actual, a regulação do sistema económico e financeiro, ainda que não ultrapassando contradições, o carácter autofágico ou a enormidade da exploração social de tal sistema, torna-se uma necessidade. A presente crise, especialmente pela sua vertente financeira, evidencia o carácter de tal exigência n
plano global. Será que os países poderosos estão disponíveis para a busca de soluções democráticas que envolvam toda a comunidade internacional? Vem-nos à memória as opções negativas do FMI, do Banco Mundial ou dessa instituição tecnocrática e ultra liberal que é o BCE ... Mas é certo que a mesma comunidade internacional foi capaz de criar a FAO, a OIT, a UNESCO...

E em Portugal?
(...)
Estas dificuldades, que atingem também as classes médias, recaem em especial sobre os trabalhadores e reformados, com os respectivos rendimentos reais médios a baixar e com aumento das situações de insegurança (desemprego, emprego precário, insuficiência dos cuidados de saúde ou da acção social pública, insegurança civil).
(...)
Na política social e nos campos económico e cultural são frustrantes os resultados da governação dos três últimos anos. Quão distantes se encontram as promessas da campanha eleitoral da realidade nos dias de hoje! O aparelho de Estado continua a revelar-se burocrático, pesado e em muitas áreas de escassa eficácia. Temos um país cuja estratégia é imposta pelo neoliberalismo dominante, a qual é responsável pela crescente perda de esperança do povo.

Se a alienação da consciência colectiva tão firmemente estimulada pelos poderes e pela maioria da comunicação social pode conduzir a uma diminuição das defesas perante comportamentos que agridem a democracia, o murmúrio de contestação às injustiças sociais e a resposta laboral firme às agressões dos poderes político e económico são os factores principais que poderão contribuir para a mudança de políticas que permitam melhor defender Portugal perante a crise mundial que se adivinha ainda longe do fim.

Não se subestima que, quaisquer que sejam as opções e as orientações, nunca será fácil vencer as enormes dificuldades que o país atravessa. Não só a crise europeia e mundial é forte condicionante das políticas portuguesas. Também a subordinação à UE, a política neoliberal e anti-social que esta prossegue, o leque de problemas que o alargamento a 27 criou, a dependência do euro, são questões que limitam a busca de caminhos para uma evolução mais favorável de Portugal.

Seja como for, só um alargado consenso social e político em torno da política nacional, do qual os trabalhadores não podem ser arredados, propiciará condições para o renascer da confiança e da esperança. O optimismo não renascerá de palavras de circunstância. Advirá de um conjunto de orientações compatíveis com a matriz constitucional. É tempo de dizer: não agridam mais a Constituição da República”
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A assinatura anual (4 números, 15 €) pode ser feita:
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quinta-feira, outubro 30, 2008

A maceração das horas...

Sob os escombros dos impérios a persistência
De dias adiados. Gestos macerados em estridência de bronze
Nos golpes desferidos.

Porém cortinas que incautos tempos
Vão abrindo. Escudos na intermitência dos golpes.
Por agora...

Heróis - dizem-me - estão gastos.
Respiram a poeira das cavalgadas e míticas auroras.
E o acaso dos dias...

No entanto sei que o esplendor das coisas possíveis
E a decantação das horas. E o perfume das madrugadas
Se alimentam desta espera. E desta teimosia.

E deste húmus.

E da fumegante audácia que germina na grandeza
De promessas – enfim! - traídas.

E nestes cardos que os ventos soltam em redemoinho.
Como espinhos...

E sei ainda que lâminas e cânticos se afinam.

E que o abraço escorre nos ombros.
E os pulsos se rasgam. E o sangue lateja.
E que as agruras são semente. E os caminhos se desbravam.

E que as ruas são torpedos quando rios
E flâmulas se incendeiam...

segunda-feira, outubro 27, 2008

A OCDE endoidou?!...

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), em relatório recente, afirma que Portugal é um dos países onde é maior o fosso entre ricos e pobres e garante que, em matéria de desigualdades, ombreamos com os Estados Unidos – haja Deus! - ficando apenas atrás da Turquia e do México. Em alguma coisa o País deveria atingir os lugares cimeiros, não vos parece?...

Há porém, quem diga que este lugar no pódio é uma cabala contra o Governo Sócrates. Outros, mais afoitos, sustentam que se trata de uma maquinação para desacreditar os sucessivos governos PS e PSD – acolitados ou não pelo CDS. - que geriram os destinos nacionais, nos últimos trinta anos. Outros ainda, mais desbragados e mal aconselhados por leituras subversivas, não se coíbem em considerar que as desigualdades económicas e sociais estão inscritas no ADN do sistema capitalista. Gente maldizente, está bem de ver...

Por mim, atrevo-me a afirmar que o senhor Michael Foerster, um dos principais autores do estudo, deve estar ao serviço de qualquer agência do mal, quiçá ser um perigoso terrorista, merecendo aliás ter a cabeça a prémio no glorioso mundo capitalista, onde a justiça social, como se sabe, é um valor inestimável... sempre adiado!

Veja-se o caso de Portugal, por exemplo. Desde o ex-primeiro ministro Cavaco Silva a José Sócrates, recordando Soares e o bloco central, a Aliança Democrática e Sá Carneiro, passando por Durão Barroso, Santana Lopes ou Guterres, em tempos mais recentes, sempre, mas sempre, as políticas seguidas no País visaram a protecção dos mais desfavorecidos, a defesa dos trabalhadores, o progresso social, o crescimento da economia e o desenvolvimento social e cultural do País.

Com enorme sucesso, como se sabe. Por isso, nos encontramos nos primeiros lugares do ranking. Ao lado dos States, ora bem!... E, se ano sim, ano sim, houve sempre que pedir mais e mais sacrifícios aos mais sacrificados foi, naturalmente, para seu bem e porque a “conjuntura” – beatífica palavra! – assim o exigia para conseguir mais e melhor...

Ainda agora o Governo acaba de disponibilizar 20 mil milhões de euros do orçamento do Estado para garantia da saúde financeira dos bancos. Em nome dos supremos interesses nacionais, evidentemente... E o mesmo acontece por essa Europa fora, onde as “terceiras vias” de todos os matizes celebraram, de braço dado com o liberalismo mais desbocado, o “fim da História” e a inequívoca da superioridade moral e material do capitalismo...

E vem agora um senhor Foerster qualquer, saltando do bojo do sistema, a garantir-nos que afinal isto está mal e vai de mal a pior... E que as desigualdades de rendimento são chocantes nos países da OCDE, os mais desenvolvidos do Mundo. Não pode ser! Alguém pode acreditar? Não vivíamos nós no melhor dos reinos?! Aqui anda equívoco, certamente. Ou talvez, prosaicamente, gato escondido com rabo de fora...

De facto, quer parecer-me que, ou a OCDE endoidou - o que de todo não é crível - ou então cumpre bem o seu papel de sempre: dar colorido científico aos ditames da ordem social dominante e assim melhor anestesiar possíveis resistências...

Se não reparem. O mesmo relatório e a mesmíssima OCDE, que zurze as desigualdades é mesma organização que intima os países membros a fazerem “muito mais” para que as pessoas “trabalhem mais”, sem contudo apresentar argumento quanto a uma outra política de salários. Circunstância tanto mais curiosa quanto a organização reconhece que o trabalho não chega para alguém evitar a pobreza, pois que “mais de metade dos pobres pertencem a famílias que recebem fracos rendimentos de actividade”.

Ou muito me engano, ou está encontrada a solução para a “crise” - mais trabalho e menores salários!... Como sempre, em todas as crises do sistema. Esperem-lhe pela volta!...

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1. Ladrões de Bicicletas, com a devida vénia;

2. Uma História Crua - por amável sugestão de Nem tudo o que sobe...

quarta-feira, outubro 22, 2008

São de bruma os tempos...

São de bruma os tempos e de barcos
Destroçados...

A Coruja de Minerva em voo nocturno
Agita-se nos pináculos
E os escravos nas galés embandeiram seus gemidos
Como hinos...

São de bruma estes tempos...
Apocalípticos...

Cães devoram-se nos restos
E os sacerdotes queimam as vestes
E cobrem-se de cinzas
No interior das praças...

E a cidade treme...
São de bruma os tempos!...

Nos céus baralham-se as estrelas
E as bússolas
Rasgam o norte no ventre das pedras
E na sede dos homens
E nas sarças
E no cume das montanhas...

São de bruma os tempos!...

E no olhar azul da criança famélica e nua
E na enxada de esperança
E nas torrentes profundas da memória
E nesta safara...

E no sol encoberto ainda desta aurora
E no vento de todas as profecias
E na insubmissão do grito
E ardor de todas as batalhas.

Planto a dor de minha árvore e minha palavra
Avara...

E a fecunda claridade dos tempos...

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Um breve intervalo. Regresso logo, logo...

Beijos e abraços.

segunda-feira, outubro 20, 2008

O Fim da Utopia?

“(...)Falei de uma possível crise, da eventualidade de uma crise do sistema. As forças que contribuem para essa crise terão que ser primeiramente discutidas de modo lato. Eu penso que esta crise terá que ser vista por nós como a confluência de tendências díspares subjectivas e objectivas, de natureza económica, política e moral (...).

Estas forças ainda não se encontram solidariamente organizadas; existem sem a base das massas nos países desenvolvidos do capitalismo de hoje; também os ghettos nos Estados Unidos da América do Norte se encontram somente ainda num estado inicial de politização experimental.

E, nestas condições, parece-me ser tarefa da oposição trabalhar primeiramente na libertação da consciência (...). Porque, de facto, verifica-se aqui que está em jogo a vida de todos nós e, efectivamente, todos nós somos o que Veblen considerava como underlying population, ou seja, os dominados: despertar a consciência da horrível política de um sistema, cujo poder e cuja força crescem com a ameaça da destruição total e que emprega as forças produtivas, que lhe estão submetidas, para reproduzir a pilhagem e a opressão (...).

A libertação da consciência de que acabo de falar é algo que significa mais do que mera discussão. De facto, significa - e terá que significar quando chegar a esse estado - manifestação no sentido exacto do termo: mostrar que, aqui, o homem total é conduzido e proclama o seu próprio querer perante a vida, ou seja, a sua vontade absoluta de viver num mundo pacificado e humano.

A ordem existente encontra-se mobilizada contra esta possibilidade real. E ,se não é bom possuirmos ilusões, é pelo menos igualmente pouco salutar - e talvez ainda o seja menos - apregoar derrotismo e quietismo que apenas podem ser depostos nas mãos do sistema.

O facto é que nos encontramos perante um sistema que hoje (...) desacreditou a própria ideia do progresso histórico, um sistema cujas contradições e antagonismos internos se têm manifestado sempre e, continuamente, em guerras desumanas e desnecessárias e cuja crescente produtividade não é mais que do que crescente destruição e esbanjamento contínuo.

Um sistema destes não é imune. Ele já se defende repudiando a oposição, inclusivamente a própria oposição dos intelectuais, em todos os pontos do globo. E mesmo que não vejamos ainda nenhuma modificação, teremos que continuar e prosseguir o caminho encetado; teremos que nos opor se ainda quisermos viver como seres humanos, trabalhar e ser felizes como homens.

Em conjunto ou aliados ao sistema já não o podemos, já deixámos de o poder. (...)
As qualidades da liberdade a que aqui me referi são, em minha opinião, qualidades que até agora não chegaram a encontrar expressão adequada no que diz respeito à ideologia do socialismo.

Entre nós, o próprio conceito do socialismo ainda se encontra muito imbuído do ambiente de desenvolvimento das forças de produção e ainda muito activo no que se refere ao aumento da produtividade do trabalho, (...) no qual a ideia do socialismo científico foi desenvolvido, não somente porque teoricamente justificável, como também porque historicamente necessário; mas hoje terá que ser discutido.

Temos, de facto, que procurar discutir, sem qualquer pejo, e definir a diferença qualitativa da sociedade socialista (como sociedade livre) das sociedades actualmente existentes, mesmo que isso possa parecer ridículo. E é exactamente aqui onde procuramos um conceito que possa eventualmente indicar a diferença qualitativa da sociedade socialista que nos surge na nossa consciência, a um tempo espontaneamente, pelo menos a mim, a dimensão estético-erótica.

Aqui o conceito “estético” deve ser tomado no seu sentido básico, como forma da sensibilidade dos sentidos e como forma de vida no mundo. Nesta perspectiva, o conceito projecta a convergência de técnica e arte e a convergência de trabalho e o jogo. (...)

Já dei aqui a indicação de que a teoria critica, que se encontra fiel a Marx, e da qual apenas esboçámos algumas das suas possibilidades mais extremas, terá que receber em si mesma o escândalo da diferenciação qualitativa, se não quiser ficar parada quando do aperfeiçoamento do mal existente (...).

E, exactamente, em virtude das possibilidades utópicas não serem nada utópicas, mas representarem a exacta negação histórico-social do existente, a consciencialização destas possibilidades (...) requer que de nossa parte haja uma oposição ao sistema muito pragmática e muito realista.

Uma oposição que seja isenta de todas as ilusões, mas igualmente livre de todos os derrotismos, cuja mera existência já seria como que uma traição à possibilidade da liberdade..."


Herbert Marcuse – in “O Fim da Utopia” - Moraes Editores – Col. “O Tempo e o Modo”

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Mas porque me lembrei deste livrinho, "velho" de mais de quarenta anos?!...
Ficam a ganhar, (re)lendo-o. Hoje.

Beijos e abraços

sexta-feira, outubro 17, 2008

Direito ao Trabalho, Direito Fundamental...

Como se sabe a Declaração Universal do Direitos Fundamentais do Homem, foi proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas a 10 de Dezembro de 1948. A Declaração surgiu como alerta à consciência mundial contra as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial.

Desta forma, a Declaração inscreveu-se no acto fundador da ONU e nos objectivos de Paz e boa convivência entre as diferentes nações, credos, raças, ideologias, etc. E, nesta perspectiva, a Declaração Universal dos Direitos do Homem enuncia os direitos fundamentais, civis, políticos e sociais de que devem gozar todos os seres humanos, sem discriminação de raça, sexo, nacionalidade, ou de qualquer outro tipo.

A noção de direitos humanos foi, entretanto, aprofundada, no decurso da segunda metade do século XX, alargando-se o conceito, sob a inspiração dos temas da Revolução Francesa e impulso da Revolução de Outubro, a três gerações de direitos fundamentais: a primeira geração refere-se aos direitos civis e políticos, fundados no ideal de liberdade (liberté); a segunda geração, diz respeito aos direitos económicos, sociais e culturais, com base no ideal de igualdade (egalité); por fim, a terceira geração, refere-se aos direitos de solidariedade, em especial ao direito à Paz e ao desenvolvimento, ao direito a ambiente sadio, entre outros, coroando-se, desta forma, a tríade de direitos fundamentais, sob o ideal de fraternidade (fraternité).

Decorre, portanto, que estas três instâncias de direitos fundamentais têm a mesma génese e a mesma matriz libertadora e que, no seu conjunto, representam um avanço político e social inquestionável, cuja realização constitui a “pedra de toque” da democraticidade de qualquer sistema político. Contudo, apesar de todos os Estados-membros da ONU serem signatários da Declaração, muitos são os que, comprovadamente, continuam a não respeitar os seus princípios.

Em Portugal, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem foi apenas subscrita em 9 de Março de 1978, na sequência da promulgação da Constituição da República que emerge da Revolução do 25 de Abril. Dando expressão aos ideais libertadores de Abril, a Constituição da República Portuguesa consagra os direitos fundamentais do homem em todas as suas vertentes – direitos políticos, direitos económicos e sociais e direitos culturais e ambientais – que, no plano jurídico-institucional, fazem dela um valioso instrumento de progresso político e social, apesar das restrições que foram introduzidas nas revisões constitucionais subsequentes, especialmente, nos direitos de egalité, ou de segunda geração.

Não cabe aqui o balanço dessas revisões constitucionais. Mas faz todo o sentido afirmar que a restrição aos direitos fundamentais foi acompanhada (ou consequência) da viragem à direita da sociedade portuguesa, a partir do final dos anos 70, de que o Partido Socialista foi cúmplice, senão mesmo agente empenhado.

Seja como for, a 10 de Dezembro, celebra-se o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Certamente a efeméride não passará despercebida nas instâncias internacionais, nomeadamente, no âmbito das Nações Unidas e do Conselho da Europa. Também a Associação Internacional de Juristas Democratas (AIJD) organiza uma Conferência Internacional em 11 e 12 de Dezembro, em Paris, no qual se irá debater “A invisibilidade dos direitos do homem – incluindo os direitos económicos, sociais e culturais, designadamente, os direitos à Paz e ao Desenvolvimento”, com a qual me sinto particularmente solidário.

Entretanto, por cá, a ordem comunicacional dominante irá, previsivelmente, ignorar a efeméride. Esta ou qualquer outra. Cumprirá com zelo o seu papel de anestesiar a sociedade portuguesa. O que é pena, pois não faltam motivos de preocupação quanto aos os direitos fundamentais do homem, para além das liberdades cívicas, que ninguém contesta.

Querem melhor exemplo? Atentem na nova legislação de trabalho. Na sociedade actual, o trabalho é o único meio digno de vida da esmagadora maioria das pessoas, pelo que permitir que alguém possa, sem um motivo forte, privar outrem deste bem tão essencial é um verdadeiro atentado a um direito humano fundamental. Como a nova legislação de trabalho permite e potencia...

Quem o afirma é o professor Jorge Leite em entrevista ao jornal “Público” de 17.1008 para depois acrescentar que (...) “as instâncias internacionais têm-se preocupado com este problema (dos despedimentos sem justa causa), designadamente, com as chamadas "saídas negociadas", que encobrem verdadeiros despedimentos, muitas vezes sem motivo legítimo; ou com as “comissões de serviço”, ou com o “período de experiência” e com essa estranha figura da “caducidade”(...),atrás da qual se escondem verdadeiros despedimentos.

Não foi por má vontade que o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia condenou Portugal por insuficiente transposição da directiva sobre despedimentos colectivos. E tudo continua a passar-se como se nada tivesse acontecido"
...”

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Bom fim-de-semana.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Prémio Dardos



Recebeu este blog a distinção do "Prémio Dardos", que muito me honra pela natureza do prémio, mas sobretudo, pelas mãos de quem foi recebido, pessoas que muito considero e respeito e cuja qualidade dos respectivos blogs muito admiro.

Agradeço, por isso, a consideração e amizade de:

as sombras ao fim do dia

vemos, ouvimos e lemos

linha de cabotagem

ermit@

bons tempos hein?!

casa de maio

daquemdalemmar

tempo entre Os Tempos

Sobre o Prémio Dardos:

Conforme consta das diversas propostas, o “Prémio Dardos” pretende reconhecer os valores culturais, éticos, literários e pessoais, que cada blog encerra e que, consequentemente, procura transmitir; ou seja, ao mesmo tempo que promove a amizade e o convívio entre os diversos editores de blogs, procura estimular um pensamento vivo e actuante, mediante a utilização responsável deste maravilhoso meio de comunicação e expressão criativa que é a Web.

Quem recebe o “Prémio Dardos” e o aceita "obriga-se" a algumas regras:

1. - Exibir a imagem ou selo do prémio;
2. - Linkar o(s) blog(s) pelo qual recebeu o prémio;
3. - Escolher quinze (15) outros blogs a quem “passar” o prémio.

Confesso a minha dificuladade em cumprir a última regra, pelas seguintes razões:

1 - Muitos dos blogs que vejo citados com a atribuição seriam, sem dúvida, também escolhas minhas, o que redundaria em desnecessário círculo vicioso;
2 - São muitos os blogs que julgo merecerem a distinção e que acabarão certamente por ser citados, sem embaraço de escolha minha e, certamente, com mais critério na menção.

Peço desculpa por "subverter" as regras. Mas que outra coisa esperar de um "herético"?!... rss

Beijos e abraços.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Vôo de Tejo sem asas...

Vôo de Tejo sem asas. Nem de velas.
Nem de partidas. Ou de mil desmedidas
Chegadas...

É de névoa o horizonte em que me despenho...

Ousamos o que sabemos nos passos
Que não damos. E ficamos...

Não mais Pirâmedes
Corroídas. Areias do deserto.
Vento suão de mil enganos.
Não mais Nilos...

Quem de Helena, tróias?!
Quem tece o rosto de Penélope
Em meus dedos?

Que romanos, que glórias?
Que Cervantes? que mistérios?
Que Machados? que Castelas?
Que sêdes de mil anos?

Torrentes de água pura
Nerudas. Índios. Neves de montanhas.
Meu sangue fervendo no gelo das estepes...

Quem me arde nesta dor?
Que sal? Que mar? Que guindastes? Que pimentas?
Que Bandarras? Que poetas?
Que Vieiras?

Camões de luto. Jangadas. Capelas imperfeitas
e Pessoa no proscénio...

não mais heróis
não mais ilhas
nem míticas profecias...

E no entanto este Povo
Este olhar desamparado que queima em cada gesto

E este fado. E este fardo...

sexta-feira, outubro 10, 2008

Confesso, eu sou culpado! (mas renego)

Confesso, sou Eu o culpado! Não ter rias – tu também és culpado!... Culpados todos Nós - sujeitos e objectos da sociedade capitalista - interpelados a todo o momento para a liturgia do consumo, na publicidade, na moda e nos modelos sociais.

Somos todos culpados os que ajoelhamos livremente perante o deus-consumo. Somos culpados de habitar uma casa nas margens suburbanas, ou de nos termos atrevido a uma segunda habitação; somos culpados da festarola por ocasião do casamento da filha, com vestido branco e dezenas de convidados; somos culpados pelos diazitos de férias fora das fronteiras com que a “cara-metade” há tanto tempo sonhava; somos culpados pela troca do velho “Fiat”; somos culpados pelo frigorífico e pelo plasma; somos culpados pela consola dos filhos; somos culpados pelos "ténis" da menina; somos culpados, de vez em quando, pelo jantarzito, fora de portas, com a família. Somos culpados pelas promessas celestiais do capitalismo triunfante e pelo bem-estar eterno das delícias do consumo. Somos culpados pois nos endividamos e perturbamos, com a nossa incúria, a ordem pré-estabelecida do “fim da História”...

Esta a “oração” que, subliminarmente, é introduzida no discurso dominante. Para que Tu e Eu nos penitenciemos. Para que Tu e Eu continuemos confiantes. Para que Tu e Eu tenhamos a certeza que o sistema encontrará a soluções para a crise. E que a nossa segurança – pois não nos foi anunciado que podemos estar descansados com os “nossos”(?) depósitos? - passará incólume a crise. E que os oficiantes do sistema – pobres de nós! – aplacarão a ira dos deuses e a vida retomará o seu percurso “natural”...

Para que todos nós digamos eternamente – “Amén!...”

Porém, eu renego! E, como "mau sujeito", hereticamente deixo-vos para reflexão as palavras sábias de um velho filósofo, em vários aspectos considerado "maldito".
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A garantia absoluta de que tudo está bem assim é a condição de os sujeitos reconhecerem o que eles são e de se conduzirem em consequência e tudo correrá bem: “Assim seja!...”

Resultado: Encerrados neste quádruplo sistema – de interpelação como sujeitos, de submissão ao Sujeito, de reconhecimento universal e de garantia absoluta, - os sujeitos “andam”, “andam sozinhos” na imensa maioria dos casos, com excepção dos “maus sujeitos”, que provocam a intervenção, deste ou daquele destacamento de aparelho (repressivo) de Estado.

Mas a imensa maioria dos (bons) sujeitos, anda bem “sozinha”, isto é, pela ideologia (...). Inserem-se nas suas práticas, regidas, pelos rituais dos Aparelhos ideológicos. E pela ideologia “reconhecem” o estado de coisas existente, de que “a verdade que é assim e não de outra maneira” de que é preciso obedecer a Deus, à voz da consciência, ao padre, ao patrão, ao engenheiro, a De Gaulle, (a Sócrates acrescento de minha lavra) que é “preciso amar o próximo como a si mesmo”, etc. A conduta concreta material desta maioria não é mais do que a inscrição na vida das admiráveis palavras da sua oração: “Assim seja!”.

Sim, os sujeitos “andam sozinhos”, quer dizer, “pelo seu próprio pé”. Todo o mistério deste efeito está nos dois primeiros momentos do quádruplo sistema que acabamos de falar, ou se preferirmos, na ambiguidade do termo sujeito. Na acepção corrente do termo significa de facto: 1) uma subjectividade livre: um centro de iniciativas, autor e responsável de seus actos; 2) um ser submetido, sujeito de uma autoridade superior, portanto desprovido de toda a liberdade, salvo a de aceitar livremente a sua submissão.

Esta última reflexão dá-nos o sentido desta ambiguidade, que reflecte apenas o efeito que a produz: o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente as ordens do Sujeito, portanto para que aceite (livremente) a sua sujeição, portanto, para que “realize sozinho” os gestos e os actos da sua sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua sujeição. É por isso que “andam sozinhos”...

Assim seja!” ... Esta expressão que regista efeito a obter, prova que não é “naturalmente” assim. Esta expressão prova que é preciso que seja assim, para que as coisas sejam o que devem ser: para que a reprodução das relações de produção seja, até nos processos de produção e de circulação, assegurada, dia após dia, na “consciência”, isto é, no comportamento os indivíduos-sujeitos, que ocupam os postos que a divisão técnica do trabalho lhes atribui na produção, na exploração, na repressão, na ideologização, na prática científica, etc.

De facto, o que está por detrás deste mecanismo de reconhecimento especular do Sujeito e dos indivíduos interpelados como sujeito e da garantia dada pelo Sujeito aos sujeitos se estes aceitarem livremente a sua sujeição às “ordens” do Sujeito? A realidade presente neste mecanismo, a que é necessariamente desconhecida nas próprias formas de reconhecimento (ideologia = reconhecimento/desconhecimento), é efectivamente, em última análise a reprodução das relações de produção e das relações que delas derivam...”



Louis Althusser – in “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado” – Editorial Presença – Biblioteca das Ciências Humanas.

terça-feira, outubro 07, 2008

Em demanda do futuro...

Como se sabe, Marx foi um agudo e incansável investigador, que compreendeu e analisou melhor que ninguém, o desenvolvimento capitalista à escala mundial. Ele percebeu que uma economia internacional globalizada era inerente ao modo de produção capitalista e predisse que esse processo engendraria não apenas crescimento e prosperidade, alardeada por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises económicas e injustiça social generalizada.

Em virtude dos últimos acontecimentos e da crise financeira desencadeada no mundo capitalista, a partir de Wall Street, que vêm mostrar a actualidade e, porventura, a dar novo impulso ao pensamento de Karl Marx, o professor Eric J. Hobsbawm foi entrevistado por Marcello Musto para a revista em castelhano, publicada on line, Sin Permiso - Republica y Socialismo también para el siglo Séc. XXI”. A entrevista pode ser lida integralmente em
La crisis del capitalismo, da qual se apresentam alguns excertos:

“A política de esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como foram os velhos movimentos socialista e comunistas(...) Na realidade, a recuperação do interesse de Marx está consideravelmente – diria principalmente - baseado na actual crise da sociedade capitalista (...). A presente crise financeira mundial, que pode bem transformar-se numa maior depressão económica nos Estados Unidos, dramatiza o fracasso da teologia do mercado livre global incontrolado e obriga, inclusive o Governo norte americano a optar por acções públicas, esquecidas desde os anos trinta.

Qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx do capitalismo e o seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo sobretudo as suas análises de instabilidade central do desenvolvimento capitalista que precede, mediante as crises económicas auto geradas, as dimensões políticas e sociais”


Sobre as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que renunciaram às ideias de Marx, Eric Hobsbawm é peremptório e afirma:

Nenhum socialista pode renunciar às ideias de Marx, não tanto por crença de que o capitalismo deverá ser substituído por outra forma de sociedade, ou como esperança ou vontade que assim seja, mas pela análise fecunda do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista.(...)

No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até seja entendido que os seus escritos não devem ser considerados autoritariamente como programas políticos, (...) mas como guia para perceber a natureza do desenvolvimento capitalista.

Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência actual dos activistas radicais em converter o anti capitalismo em anti-globalismo seja abandonada. A globalização existe e é irreversível. Com efeito, Marx reconheceu-o como um facto e, como internacionalista, lhe deu teoricamente as boas vindas. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.
(...)

Para qualquer interessado nas ideias de Marx, é manifesto que Marx é e permanecerá como uma das mentes filosóficas mais poderosas do século XIX e analista económico, na sua máxima expressão. É importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode entender-se sem a influência que os escritos deste homem tiveram no século XX. E, finalmente, Marx deveria ser lido porque - ele próprio o escreveu - o mundo não pode ser mudado a menos que seja compreendido; e, neste contexto Marx permanece como um soberano guia para a compreensão do mundo e os problemas a que temos de fazer frente”.

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Eric Hobsbawm é um dos maiores historiadores da actualidade. Presidente do Birkbeck College (London University), é também professor emérito da New School for Social Research (New York).

Entre os seus múltiplos trabalhos encontra-se a conhecida trilogia acerca do “grande século XIX” – “The Age of Revolution”: Europe 1789-1848 (1962); “The Age of Capital”: 1848-1874 (1975); “The Age of Empire”: 1875-1914 (1987), traduzidos e publicados em vários idiomas, entre os quais em português, pela Editorial Presença.

sexta-feira, outubro 03, 2008

Rumor da língua...

Sou pedra e água. Ou talvez o rumor da língua
Na escalada da palavra. Catedrais apenas visíveis
Na inocência dos sentidos. Ou nos silêncios
Sinfónicos de nada.

Claro-escuro de mim em cada sílaba. Vendavais
Que buscam apenas o pretexto e a tempestade
No rosto inocente das palavras por dizer.
E assim me espraio.

Inaudíveis estes sons de um canto impuro
Que se esfuma em mistério
Como o decair da tarde ou o zénite de sol
Ou o gosto acre da terra depois da chuva...

Agarro-me à solicitude das palavras
Em que órfão mergulho. Quais reflexos doirados
Alimentando-se das entranhas do vento
Sem outra glória que não seja a emoção alada
E o fio ténue que as segura...

Estou salvo.

Seminais estas veredas em que me digo.


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Bom fim de semana. Beijos e abraços...

terça-feira, setembro 30, 2008

Palavras Outras...



1.“Os fiéis do Deus-mercado parecem ter descoberto de repente as virtudes do Estado Social, devidamente adaptado aos valores da religião do lucro a qualquer preço, e que, em vez de apoiar os pobres, subsidia os ricos. Já tem um Papa. Chama-se Henry Paulson e cabe-lhe a duvidosa glória de ser um dos inventores do capitalismo de casino que agora bateu no fundo provocando a crise financeira que abala a Terra Prometida e arredores. Depois de 30 anos de especulador na Wall Street, Paulson chegou a Secretário do Tesouro e é dele a feliz ideia de pagar com 700 mil milhões dos contribuintes as dívidas e “activos tóxicos” acumulados por empresas falidas, acrescidos de “compensações” milionárias aos gestores que as levaram à falência, assim salvando fortunas como a sua, calculada em 500 milhões de dólares, a maior parte em acções da também falida Goldman Sachs. No Estado Providência neoliberal, quem paga quer as crises quer as soluções das crises do mercado são sempre os contribuintes. Lá como cá, chamam eles a isso (meter os lucros ao bolso e cobrar ao Estado as perdas) “auto-regulação” do mercado”.
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2.“Descubro pelos jornais o que, com boas e históricas razões, já sabia: sou eu (isto é, você, leitor) quem vai pagar os milhares de milhões de dólares de dívidas que levaram o banco Lellman Brothers (LB) à falência. A acrescer à factura que já nos estava (a mim e a si, leitor) a ser cobrada pelo também americano colapso do crédito hipotecário de alto risco (“subprime”, dizem eles) e às que iremos pagar a seguir pela cascata de falências financeiras que, depois dado LB, aí virão. A beleza do capitalismo especulativo na sua versão selvagem e neoliberal é que, quando um especulador global espirra, nós, os mal agasalhados, apanhamos uma pneumonia. E quando, como eles também dizem, “a economia real arrefece” nós é que tiritamos de frio. Parafraseando o Papa, “o amor (deles) ao dinheiro é a raiz de todos os (nossos) males”. Fosse eu dado a coisas “new age” e veria nesta tumultuosa espécie de neo-Grande Depressão uma mão astral. Não é que, algures além-túmulo (e, pelos vistos, aquém-túmulo) os maléficos utopistas Marx e Engels estão nesta altura a comemorar os 160 anos do Manifesto Comunista?”



Manuel António Pina - in "Por Outras Palavras" - Jornal de Notícias

sexta-feira, setembro 26, 2008

No outro lado do poema...

no outro lado do poema
aí onde a luz colapsa de tão negra
lá onde a palavra brota como lume no seixo
e o nada se faz fogo
inscrevo o nome das coisas...

e na luminosa obscuridade das palavras
e na tatuagem dos dias
e no estilete de bronze
que os deuses em seu desenfado
por vezes emprestam aos mortais
(re)escrevo as dores de meus pensamentos
resguardados da obscena exposição
de martírios, alegrias e de enganos...

e soletro em bebedeira de sentidos todos os rumores
e partilho o poema-outro
o que vem de fora
e de tão íntimo
se mistura no sangue cúmplice
e de tão grave se funde no desejo transgressor
em que vou

ardendo...

terça-feira, setembro 23, 2008

Até quando?...


Como se sabe, a farra especulativa da Wall Street e de outras capitais da finança provocou uma formidável crise financeira mundial, da qual, dizem os entendidos, ainda não saímos. As notícias, que tombam em tropel, dão-nos conta que, ao longo das últimas semanas, a AIG, a maior companhia seguradora do mundo, com um milhão de milhões de dólares em activos, esteve a poucos horas da bancarrota. Antes, fora a Lehman Brothers, um prestigiado banco de investimento com 158 anos de idade, com 639 mil milhões de dólares em activos e 613 mil milhões de dólares em dívidas, que caiu na maior bancarrota da história dos Estados Unidos. A Merrill Lynch, outro pilar dos bancos de investimento com mais um milhão de milhões de dólares em activos, conseguiu evitar a bancarrota, depois de ser engolido pelo Bank of América

Quando a crise da bancarrota estava na sua fase mais aguda, as autoridades bancárias dos Estados Unidos defenderam que teriam de ser os banqueiros a resolver o problema. Entretanto, dando o dito pelo não dito, o governo dos EUA providenciou mais 85 mil milhões de dólares para salvamento dos bancos. É um sinal de crise e de fraqueza do liberalismo reinante. Outros dizem, a vingança de Keynes e da intervenção do Estado...

Mas enquanto a crise dos banqueiros produziu títulos sensacionais nas televisões e na imprensa mundial, com relatos dramáticos da agonia de um punhado de milionários e bilionários na Wall Street, os média do pensamento único deixaram de lado o drama real dos arrestos e despedimentos que afectam as vidas de milhões de trabalhadores. Centenas de milhares de milhões de dólares do Estado estão a ser repartidos pelos banqueiros por efeito de uma crise, que a sua ganância predadora provocou. Mas nenhum alívio, ou apoio financeiro, foi assegurado para as vítimas da indústria hipotecária da banca e dos seguros...

Nesta perspectiva, não deixa de ser significativo, que os media que choram sobre as agruras dos banqueiros ignore simplesmente um estudo recente intitulado “Estado do sonho: arrestado” (State of the Dream: Foreclosed), o qual demonstra que a crise dos arrestos nos Estados Unidos está a provocar a maior destruição de riqueza pessoal na história das comunidades afro-americanas e latinas.

Segundo o estudo, os mutuários afro-americanos perderam entre 71 e 92 mil milhões de dólares devido aos empréstimos contraídos ao longo dos últimos oito anos. Para a população latina é ainda mais elevado o valor das perdas que atinge valores na ordem entre os 75 e os 98 mil milhões de dólares.

Mas tão ou mais desastrosa que a crise financeira é a crescente crise da economia real. No meio da crise do crédito, foi anunciado que a produção industrial – a base do emprego e do rendimento das famílias – em Agosto caiu, nos Estados Unidos, o máximo dos últimos três anos. Houve uma diminuição de 1,1 por cento na produção das fábricas, das minas e serviços públicos. A produção automóvel caiu 12 por cento, a maior queda numa década. Mais de dois milhões de pessoas foram condenadas ao desemprego nos últimos 12 meses, elevando o total oficial para 9,4 milhões de desempregados.

Assim, por muito que os “sábios encartados” ao serviço do capitalismo global declarem não haver recessão, o contínuo crescimento do desemprego e o declínio da produção, sem consideração por quaisquer dos chamados “estímulos económicos”, demonstra exactamente o contrário...
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Entretanto, por cá, o Eng.º Sócrates clama, em comício político em terras de Guimarães, que nunca, em tempo algum “permitirá que o valor das pensões dos portugueses seja jogado na bolsa e entregue aos caprichos dos mercados financeiros...” . Leio que foi muito aplaudido, nesta passagem. Pudera!... Até eu, que não sou socialista, nem voto em Sócrates, aplaudiria sem rebuço...

Mas com o Eng.º Sócrates nunca fiando! É que, como qualquer (in)crédulo cidadão poderá verificar numa mera consulta a net, ao sitio da Segurança Social, 20,67% das reservas do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, ou sejam, mais 1.562 milhões de euros estão aplicados em acções, sujeitas às flutuações dos mercados financeiros e entregues “aos caprichos” do jogo da bolsa, exactamente o oposto do que o Engº Sócrates jura que não irá permitir...

Quem andará a enganar o Engº Sócrates? Ou, colocando a questão de outro modo – quem pretende enganar o Engº Sócrates?!... É que, como muitos se lembrarão, o seu Secretário de Estado da Segurança Social, ainda recentemente, anunciou que iria colocar mais de 600 milhões de euros na “gestão privada”... Esperemos que, entretanto, não tenham “voado” na gestão “parcimoniosa” do BCP ou de qualquer Lehman Brothers, entretanto falido...

Porque se assim foi, já foram...



ver O colapso capitalista

sexta-feira, setembro 19, 2008

Tecendo as cores...

Nada.

Apenas o Poeta na paisagem
E a majestosa gralha
Cuidando as penas depois da chuva.
Breve...

E o caprichoso melro circular
Em voo trinado
Assediando a árvore
E o sol ligeiro.

(Por certo o beijo...)

Apenas o melro e a gralha...
No céu...

E o anjo negro cavalgando a nuvem.

Assim eu descendo na asa do milagre
Sem outra grandeza ou glória
Ou outro instante de lume...

Apenas
A repentina gralha
E o voo do pássaro
Ou a neutra rosa
Afadigando-se em ser...

Talvez apenas o Poeta
Tecendo as cores da árvore
Na gravura da paisagem...


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Bom fim de semana! Até breve...

Beijos e Abraços

quarta-feira, setembro 17, 2008

“Um despautério..."

Está em discussão no Parlamento a proposta de lei de alteração da legislação laboral. Como se sabe, as linhas gerais da proposta de lei foram aprovadas em sede da concertação social, com a veemente oposição da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), mas com os votos do Governo e do patronato e a solícita aquiescência da UGT...

A nova legislação de trabalho, a entrar em vigor, constituirá um enorme retrocesso social, a que nenhuma pessoa ou instituição democrática, poderão deixar de dar-lhe empenhado combate. De facto, a legislação que se anuncia, vem postergar um princípio juridico o príncipio da igualdade, que se traduz, não em um qualquer igualitarismo sem sentido, mas em “tratar o igual como igual e o diferente como diferente, na exacta medida da sua diferença...”. Porque - importa acentuar - as leis nunca são neutras...

Como se recordou noutra ocasião, o(s) menino(s) de oiro e a esquerda, o poder social do senhor Belmiro de Azevedo, é infinitamente maior do que o de um(a) qualquer jovem, com contrato a prazo e salário de miséria, nas caixas registadoras de um dos seus supermercados...

Quando a nova legislação de trabalho se propõe facilitar os despedimentos individuais e dificultar a reintegração dos trabalhadores despedidos ilegalmente, sem que se conheçam sequer os meios processuais de impugnação do despedimento, é colocar todos os pesos da justiça no prato da balança do patronato. Isto é, tais propostas vêm subverter o equilíbrio das relações laborais e instituir a iniquidade e arbítrio do patronato...

A afirmação não é minha, embora com ela concordando integralmente. Socorro-me, nesta emergência, da opinião de juristas eminentes, de diversos quadrantes políticos e especialistas em matéria de direito de trabalho, em encontro de discussão pública, realizado, numa sala do Parlamento, promovido pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP).

É verdade que nova proposta legislação mantém a impossibilidade de despedimento sem justa causa e não alterou este conceito, como o patronato se bateu, pretendendo introduzir a inadaptibilidade do trabalhador, com fundamento de despedimento. Mas se isto é verdade, a nova legislação propõe-se alterar o procedimento de despedimento, que aumenta o risco de despedimento ilícito, sem posterior possibilidade de reintegração dos trabalhadores visados.

Basicamente, o novo Código do Trabalho visa diminuir, quando não acabar, com do processo disciplinar, prévio à decisão de despedimento. Na nova perspectiva, deixará de estar consagrada a obrigatoriedade das diligências instrutórias pedidas pelo trabalhador, cabendo apenas ao empregador decidir se haverá ou não de instrução do processo disciplinar. A prova passará para o tribunal, cabendo ao empregador o ónus da prova da justa causa invocada. A razão da alteração é uma alegada intenção do governo de desburocratizar o processo...

Porém, sustentam os juristas, o processo disciplinar não pode ser um “ritual farisaico” - é o principio constitucional do direito ao contraditório que esta em causa -, pelo que não pode ser assim ser desvalorizado, em nome de uma celeridade iníqua. Acresce, como também foi lembrado, que a suspensão do despedimento, no âmbito do processo, apenas pode ocorrer por iniciativa do empregador, o que “inviabiliza na prática a possibilidade de suspensão” de despedimento em causa.

Por outro lado, o trabalhador deixou de ter o prazo de um ano para requerer a impugnação do despedimento, que passou apenas para 60 dias. Excessivamente curto, dizem os juristas, tanto mais que nesse prazo de 60 dias se inclui o período de mediação laboral, que a lei impõe, caso o trabalhador pretenda ficar isento de custas judiciais...

A tudo isto há a juntar a morosidade do julgamento (há processos que duram anos), pelo que o mais que certo é que um despedimento ilícito não se resolva na reintegração do trabalhador lesado; tanto mais que uma inovação de duvidosa constitucionalidade permite ao empregador opor-se à reintegração, pagando o dobro da indemnização devida.

Nesta breve síntese de malfeitorias importa ainda referir que, com a nova lei de trabalho, é alargado o período experimental, que passa de 90 para 180 dias, em que cada uma das partes pode rescindir contrato sem aviso prévio. Este alargamento do período experimental constituiu uma exigência patronal, introduzida à revelia da comissão que elaborou o livro branco das relações laborais, o qual esteve na base da discussão na concertação social.

Assim, se o novo Código do Trabalho for aprovado, um trabalhador pode ser despedido ao fim de seis meses, sem receber qualquer indemnização. Como se compreende, o empregador nem precisará, portanto, de lançar mão do expediente dos contratos a prazo, pois pode prosseguir os mesmos objectivos, pagando menos encargos sociais e ficando com as mãos livres para despedir livremente.

Nesta matéria específica, choca particularmente a “marca” política que lhe está na génese. Ou seja, trata-se de uma “contrapartida” ao patronato pelas penalizações nas contribuições sociais dos contratos a prazo (de 23,75 para 26,75 por cento), que irão beneficiar dos descontos, mantendo no entanto a precariedade no período experimental alargado.

E como, curiosamente, não são as alteradas normas do contrato a termo, nem sequer nos contratos de curto prazo, em breve teremos o Engº Sócrates a anunciar, ufano, nas televisões, a diminuição dos contratos a prazo, escamoteando a realidade de aumento da precariedade do trabalho, por força do alargamento de prazo do período experimental, bem mais favorável ao patronato.

“Um despautério” lhe ouvi chamar... Uns trampolineiros políticos, apetece acrescentar...

domingo, setembro 14, 2008

Solidariedade com a Bolívia...

Parecem muito claras as motivações da instabilidade política e dos atentados que presentemente assolam a Bolívia.

A elite económica e os políticos de direita, que predominam nas cinco províncias orientais, não aceitam que o governo legítimo do País pretenda controlar a economia e redistribuir o rendimento nacional a favor dos mais pobres, extinguindo privilégios e que, ao mesmo tempo, devolva a cidadania ao Povo, conferindo gradualmente autonomia às comunidades indígenas, exploradas e marginalizadas em 183 anos de história.

Acresce que, embora num quadro de economia mista, Morales tem promovido uma política de intervenção económica, socializando actividades e sectores económicos considerados mal geridos ou geridos contra o interesse nacional. Esta política, naturalmente, tem resistências nas classes abastadas bolivianas.

Por outro lado, a etnia índia do Presidente Evo Morales causa engulhos na minoria branca e europeizada, até agora com o monopólio da actividade política, aliás dominada por regimes antidemocráticos e o esbulho da riqueza nacional. Expressões como “macaco”, índio infeliz” e “índio porco”, usadas pelos governadores da oposição para agredir Morales, são bem reveladoras das boas maneiras, cultivadas pelas elites bolivianas. E, no entanto, a minoria branca não ultrapassa 15% da população, sendo que 60% e constituída é constituída por índios quechúa e aymara.

Segundo o FMI, quando Morales foi eleito, em Dezembro de 2005, a Bolívia era o país mais pobre da América do Sul, com 60% dos seus 9 milhões de habitantes abaixo da linha da pobreza e 38% em extrema pobreza; o desemprego atingia os 12%, com 40% de sub-empregados e o rendimento dos indígenas 40% inferior a dos não indígenas.

Entretanto, nos dois anos e meio de governo Morales, este quadro começou a mudar. O Governo boliviano tem aumentado as receitas do Estado, revendo os acordos de exportação de gás e petróleo com o Brasil e a Argentina, desvantajosos ao país e estabelecendo o controle estatal sobre a exploração dessas riquezas. A Bolívia passou a deter 85% dos lucros e suas exportações dobraram de 2005 para 2006, chegando a 4,9 mil milhões de dólares...

Para estimular a industrialização e reduzir o desemprego, concedeu, através concurso, a exploração da mina de Mutun à empresa siderúrgica indiana, com proposta de investir 1,5 mil milhões de dólares e mais 2,5 mil milhões em 8 anos. Por outro lado, foi celebrado um acordo económico com o Irão que prevê o investimento de 230 milhões de dólares na instalação de uma fábrica de cimento e mais 1,1 mil milhões em energia, agricultura e indústria alimentícia. Com o Irão, imaginem!...

Na área social, Evo Morales anunciou uma reforma agrária, propondo-se a expropriação de 14 mil hectares de terras, a maioria não cultivada. Foram, por outro lado, feitos substanciais investimentos na Educação e parte das receitas provenientes da venda de gás natural reservadas à melhoria da situação social dos mais pobres, em particular, os idosos pobres.

Para consolidar as reformas necessárias, é necessária, no entanto, uma nova Constituição. Aprovada pelo Congresso, com abstenção da direita, não foi aceite, porém, pelos governadores insurrectos. Exigem mais autonomia – o controle da distribuição dos recursos dos hidrocarbonetos produzidos localmente (82% do gás do país),o fim das pensões financiadas com parte dos rendimentos do gás e rejeitam “in limine” a nova Constituição.

O governo de Morales e seus adversários concordaram com a realização de um referendo revogatório, no qual o povo poderia manter ou afastar o presidente, governadores de departamentos e perfeitos das províncias. O resultado foi favorável ao governo central. Morales obteve 67% dos votos a favor e venceu em 95% das 112 províncias. O apoio popular a Morales é indiscutível. A direita, no entanto, continua em pé de guerra. Claro que semelhantes resultados não agradam ao “império”. Manifestamente, a Bolívia inclina-se para o “eixo do mal”...

As manifestações se intensificaram, numa escalada de violência que chega ao bloqueio de estradas para impedir a chegada de alimentos às cidades, incêndio de edifícios de instituições do governo central – destruição de documentos públicos, ataques a aeroportos, estações de comboios, locais de reuniões de indígenas e, por fim, explosões de gasodutos e cortes no envio de gás para o Brasil –, visando paralisar as exportações. Como é evidente, tendo em vista provocar o caos e criar um ambiente propício para um golpe de Estado.

Assim vai a Bolívia... Semelhante “espectáculo” já foi visto, infelizmente, noutros locais do Mundo. No Chile, por exemplo. São, no entanto, outros os tempos. A solidariedade dos povos sul-americanos funciona. A Bolívia vencerá...

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ver Luiz Eça

quarta-feira, setembro 10, 2008

Variações sobre Magritte...



encruzilhada de todos os caminhos (geometria de almas)
vieste com tua irmã - as duas de tempo vendado
como amantes sem rosto celebrando Magritte...

estilhaço os vidros para que a paisagem
ocupe todo o espaço de meu corpo anjo negro de mim
suspenso na ponte dos dias e da memória...

perdura o abandono dos dedos soltando a brisa
e o feitiço da lua sobre a copa dos pinheiros
na serenidade do corpo distendido...

multidão esvoaçante sobre os telhados (subtil a luz doirada)

veneração pura na magia negra do ventre em triângulo de cor no vértice dos seios perfumados de azul...

soberba luz faminta no olhar da fera (indiferente ao drama)
apenas vida na espera - fogo consentido da fêmea ao longe adivinhada...

domingo, setembro 07, 2008

Pink Floyd - Money

money is the gas...

Cynthia McKinney (USA) - Uma candidatura alternativa...

Cynthia McKinney, uma corajosa ex-congressista negra eleita pelo Estado da Geórgia, tornou-se numa das mais importantes activistas e líderes da esquerda norte-americana e dos movimentos progressistas no país. A sua militância contra a guerra no Iraque, pela destituição do presidente George W. Bush, em defesa das vítimas do furacão Katrina e na denúncia do papel do governo no desalojamento de milhares de pessoas, valeu-lhe o rótulo de “demasiado negra e radical” para passear nos corredores do Congresso.

Por esse motivo, foi expulsa não uma, mas duas vezes pela direcção do Partido Democrata, o qual, tal como o congénere Republicano, é um partido do imperialismo. O ano passado, McKinney cortou definitivamente os laços com os Democratas.

A 12 de Julho último, McKinney e a activista de origem latina Rosa Clemente, foram escolhidas pelo Partido Ecologista para se candidatarem à presidência e vice-presidência dos EUA, respectivamente. A nomeação por parte dos ecologistas coloca McKinney nas assembleias de voto de 20 Estados. Isto não é coisa pouca num país onde a classe dominante montou um sistema que levanta enormes obstáculos ao surgimento de argumentos eleitorais independentes e alternativos aos dos dois maiores partidos.

A campanha protagonizada por Cynthia McKinney vai buscar grande parte das suas propostas ao programa provisório do ainda embrionário Partido da Reconstrução, formado por activistas de Nova Orleães e do Golfo do México, os quais, junto com grupos de todo o país, exigem justiça para os sobreviventes do Katrina e a reconstrução das regiões da Costa Sudeste da América do Norte.

O programa reivindica, entre outras coisas: igualdade de direitos para os negros norte-americanos; realojamento dos deslocados do Katrina; políticas eficazes de emprego, saúde e habitação; fim da política racista e da repressão policial; fim do complexo militar-industrial; retirada imediata do Iraque.

McKinney declarou-se igualmente contrária à ocupação do Afeganistão e a qualquer envolvimento dos EUA num ataque ao Irão, e expressou claramente a sua solidariedade para com a luta do povo palestiniano. Quanto às questões envolvendo o Zimbabué e o Darfur, a candidata pôs a nu os contornos reaccionários da intervenção de Washington no continente africano.

A Campanha de Cynthia McKinney vai enfrentar grandes dificuldades na medida em que esta eleição presidencial apresenta aspectos que a diferenciam das antecedentes. Barack Obama é o primeiro negro a ser nomeado candidato por um partido do sistema, e, assim, pode mesmo vir a ser o primeiro presidente negro dos EUA. Muitos estão compreensivelmente entusiasmados com a hipótese, particularmente os afro-americanos. Independentemente do quanto Obama se possa a aproximar das posições da direita conservadora, certo é que os eleitores negros se vão mobilizar procurando concretizar uma esperança que a maioria julgava impensável há apenas um ano atrás.

Para além dos eleitores negros, muitos votarão em Obama por razões, que consideradas no contexto histórico norte-americano, são progressistas. Muitos outros não vão votar em Obama pelo inverso, ou seja, porque o seu nome induz que o candidato é muçulmano, ou simplesmente porque é negro. Raça, ou o que muitos de nós chamamos de “questão nacional”, joga nas eleições deste ano um papel central.

A possibilidade de triunfo de Obama pode ainda ser um sinal de que o período político dominado pela reacção ultra-conservadora, que provocou fortes recuos entre a classe trabalhadora e enfraqueceu o movimento revolucionário, está a chegar ao fim.

Acresce um lado negativo a estes desenvolvimentos contraditórios. Caso Obama venha a ser eleito, o que é ainda de todo incerto, a classe dominante nos EUA terá um político negro que os pode ajudar a salvar o conturbado império. Uma administração com Obama como face de um Estado imperialista pouco ou nada muda no fundamental da questão, mas enquanto mistificação assinala toda uma nova situação.

Independentemente de quem venha a ganhar as eleições, a magnitude da crise mundial do imperialismo, centrada nos EUA, vai desafiar todas as forças que partilham uma orientação socialista, anti-imperialista e comprometida com as classes trabalhadoras. As condições materiais para o ressurgimento do movimento operário e da luta dos trabalhadores nos EUA pode em breve atingir níveis próximos dos registados na década de 30.

A luta não pode ficar confinada à arena eleitoral, especialmente quando os capitalistas dominam inteiramente esse processo. A campanha de McKinney lança as bases para uma aliança radical entre latinos, negros, asiáticos, nativos americanos, sindicalistas e progressistas, imigrantes e sectores afectos à luta pelo socialismo e apresenta um enorme potencial de crescimento. Pode ajudar a trazer para as ruas uma linha política de luta de massas”


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Larry Holmes é colaborador do jornal norte-americano Workers World e da revista Seara Nova, podendo conhecer-se um artigo do autor, sobre este tema, no nº1704 - Verão 2008.

quinta-feira, setembro 04, 2008

“Não há festa como esta!...”

A Festa do Avante, promovida pelo jornal do Partido Comunista Português, celebra-se, anualmente, na Quinta da Atalaia, no Seixal, com a participação de milhares e milhares de pessoas, de todas as idades e condições sociais, vindas de todos os cantos do país (e muitas do estrangeiro) para três dias de encontro e confraternização.

“Não há festa como esta” dizem, com razão, os seus promotores e militantes. E não apenas pelos seus eventos culturais (com o melhor que se produz no domínio da música – para todos os gostos - das artes plásticas ou da literatura), ou por esse mosaico de gostos e paladares que são a culinária e os vinhos nacionais, ou pela multifacetada expressão do artesanato regional, ou pelos exaltantes momentos de participação política.

Claro que haverá sempre diversos olhares sobre a Festa. É natural que haja. Apenas a engrandecem aqueles que por preconceito, ou por função e missão, dela desdenham. Mas para quem, com olhar límpido, quiser ver não poderá ignorar o imenso sortilégio que a Festa do Avante exerce sobre quem a frequenta, independentemente, das opiniões políticas.

E é caso para nos interrogarmos sobre as razões de semelhante sucesso, numa sociedade eivada de um anticomunismo larvar, permanentemente instigado pelos aparelhos de dominação ideológica – na comunicação social, nos modelos de sociais, nos padrões de consumo, na política, na profusão das imagens que encharcam o nosso quotidiano.

Porque razão o “efeito” Festa do Avante excede o horizonte da mera militância política e seduz tanta gente? Digam-me. Tenho, porém, claro que a Festa do Avante é antítese perfeita da chamada “sociedade do espectáculo”, em que andamos mergulhados. Dai as razões do seu sucesso...

Deixem que tente explicar-me. Como sustenta Guy Debord, as modernas condições de produção apresentam-se como uma imensa acumulação de espectáculos, onde “tudo o que até então era directamente vivido se afastou numa representação”.

Assim, o espectáculo será, no dizer deste autor, “ao mesmo tempo o resultado e o projecto do modo de produção existente”. Sob todas as suas formas particulares - informação ou propaganda, publicidade ou consumo, ou divertimentos - o espectáculo constitui o modelo da vida socialmente dominante, numa “afirmação omnipresente da escolha já feita na produção e no consumo”.

Forma e conteúdo do espectáculo são, assim, a justificação total das condições e dos fins do sistema de produção existente. Numa frase lapidar, “o espectáculo será o discurso ininterrupto que a ordem dominante faz sobre si própria, ou seja, o seu monólogo elogioso”, .

O processo de alienação será permanente: quanto mais o espectador contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. “A exterioridade do espectáculo em relação ao homem concreto revela-se nisto - os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta”.

Pois bem, a Festa do Avante escapa a tal lógica. A Festa do Avante pertence literalmente dos seus construtores. É trabalho voluntário que ergue os seus pilares. Trabalho livre, sem salário. Com o tempo e a forma que cada um escolha, motivado apenas pelo desejo de “fazer” a festa. Trabalho desalienado, portanto. Que subverte do sistema de produção dominante, pois é demonstração prática (precária que seja) de que outro modo de produção é possível.

Por outro lado, a Festa do Avante pode ser usufruída sem mediação, nem filtros, por todos aqueles que nela participem. O espectáculo, (que Festa do Avante também é) e as imagens que projecta na sociedade portuguesa e, em especial, em que têm o privilégio de nela participar e compreender, correspondem à vivência real dos homens concretos, como “discurso” alternativo à ordem social alienante.

Por momentos, nos três dias da festa, será a libertação do Desejo e do Sonho, (“de focinho pontiagudo”), sondando os dias do Futuro. E a vida real de milhares pessoas, alargando o horizonte da consciência social de cada um e o caudal da consciência colectiva de que é possível uma vida melhor.

Gosto, sim, da Festa do Avante. Muito. Como paradigma de uma sociedade diferente. Mais justa, solidária e fraterna. Como lampejo da Utopia, que as mãos, a luta e o suor dos homens, libertos das contingências de modo de produção dominante, um dia poderão erguer...

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...