Em pousio, nas delícias do Portugal profundo, os rios da minha infância são agora areias por onde despontam raízes e ervas, que teimam ainda... O tempo - “esse grande escultor” – deixa, inevitavelmente, marcas nos rostos, nas coisas e nos próprios sentimentos. Em cada passo, arrima-se o gosto ácido dos frutos, como se o mel silvestre e as amoras fossem apenas o gesto esquecido de colhê-los... Os caminhos, como se sabe, são, tantas vezes, o percurso inverso da alma!... Por isso, a lógica das emoções, assume, por momentos, o proscénio de mim, mas acalmo, célere, o sonho e o frémito. Sorrio complacente e subo à espuma dos dias...
À superfície, a (i)realidade impõe-se, incontornável (palavrão em moda). A dona televisão, gaiteira, devolve-me ao mundo nas pistas do “Portugal positivo”... Espampanante, nos seus cinquenta anos (bem?) vividos, a televisão pública, cavalgando o suor da volta a Portugal em bicicleta, trepa às veredas ignoradas do país, num exercício ridículo de auto promoção, disfarçado no propósito de divulgação do popular desporto e, explicitamente, também dos “valores nacionais”...
Com bivaque e aboletamento em cada local de paragem...
O espectáculo, porém, se bem repararem, é pungente! Digno, aliás, das comemorações. Décadas atrás, Ramiro Valadão, no seu longo consulado à frente da RTP, não teria produzido melhor...
Um apresentador, qual “calinas” (saravah, Henrique Viana) saído do teatro de revista, é o dono do programa: a pose empastelada, a piada de mau gosto, a ignorância alarve e atrevida perdem agora porque são a “realidade”. Acolitando, quais borboletas encandeadas, as meninas do programa (salvo seja) são incansáveis, desfazendo-se entre os sorrisos para o cantor pimba e o concurso da pedalada em seco, isto é, em bicicleta inamovível, sem outro desígnio que não seja o cobiçado prémio em jogo...
Em simultâneo, o desfile das celebridades locais. A gravata de seda do presidente da Câmara, o patati patatá do desenvolvimento local, a doutora da cultura (cultivando o perfil e a pose), o “ilustre” da terra, o emigrante de sucesso (arrotando sentenças), o padre, a orquestra, o grupo folclórico, o doce, o chouriço e o vinho (honra lhe seja). Enfim, toda a panóplia do país castiço, que teimam que Portugal seja...
Num dos programas, como centro da atracção, saltou (em sentido literal) uma exibição em cama elástica. Basbaques, subindo aos céus... Noutro, um brioso jogo do pau... Querem maior excelência?!... Pelo jogo do pau é que lá iremos, estou certo disso...
Não vos falo do figurão (ou da figurinha) tutelar do grupo: cabelo de bom corte, camisa último grito, aberta até a braguilha (passe o exagero) e a floresta capilar em exibição à boa maneira do melhor de Paulo Portas (lembram-se?), em proselitismo acelerado das virtudes do jogo do pau e das tradições nacionais...
Tivera eu algum poder e bater-me-ia, de imediato, para que o ensino da matemática fosse substituído pelo jogo do pau, pelo menos três vezes ao dia. Imaginem a robustez intelectual dos nossos jovens... E o mesmo, aliás, quanto aos saltos em cama elástica, que, decididamente, fazem falta nas nossas escolas, em substituição do ensino da filosofia... Qual Hegel, qual Kant?!... Não há como um bom salto em cama elástica para ver longe e alto! E é radical que baste, pelo menos bem mais que as corridinhas do nosso Primeiro-ministro...
Este o paradigma do “Portugal positivo”... Eu sei que, neste texto, há traços de exagero. E que, por entre a panóplia de banalidades, o programa pode(ria) contribuir para elevar a auto estima de terras e pessoas ignoradas, que, por vezes, irrompem subvertendo os cânones do programa festivo. Como aquele homem, curtido pelo tempo e pela vida, que no contexto do programa, não se inibe em afirmar que melhores vão os tempos hoje na sua terra “com banho diário e almoço todos os dias...”
Embalo a trouxa das minhas ruminações. Que posso eu acrescentar a tão luminosa síntese do percurso do País, nas últimas décadas?!...
Desligo, por isso, a TV e, beatificamente, prossigo “em na busca do (meu) tempo perdido”...
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Aprecio muito o vosso convívio, mas, por mais alguns dias, é difícil poder frequentar os vossos blogs. Beijos e abraços. Até breve...