domingo, setembro 24, 2006

"Paleólogo" me confesso!...

Se paleólogo significa, como o étimo grego sugere, “aquele que fala das coisas antigas”, isto é, aquele que, na espuma dos dias, se deixa seduzir pelas mais remotas essências, então eu, Manuel, paleólogo me confesso! ...

Como facilmente se advinha, vem a “boutade” a propósito das declarações polémicas de Bento XVI, em que Sua Santidade, valendo-se de imperiais e bizantinas palavras, sepultas na noite medieval, disse da religião muçulmana muito mais que o profeta Maomé alguma vez disse do toucinho... De facto, encontrar no islão apenas coisas más e, entre elas, “o direito de difundir a fé pela espada” não lembraria a qualquer ateu empedernido...

Vá lá perceber-se os altos desígnios papais, quando, num mundo em ebulição, o chefe da Igreja Católica, atira gasolina para a fogueira muçulmana!... A única justificação que encontro é a enorme arrogância cultural, que ofusca e cega os seus mais altos dignatários. Apetece, por isso sugerir ao Vaticano maior polimento nos valiosos espelhos de cristal dos seus salões e, em especial, nos pontifícios aposentos...Talvez, assim, com novo brilho, pudessem reflectir, com mais verdade, a dignidade cardinalícia dos seus hóspedes e a expressão genuína, ao longo da história, da “espada” católica ...

É óbvio que, neste incidente, o Papa “meteu a pata na poça” (passe o plebeísmo). E temos agora, numa roda viva, a diplomacia do Vaticano a apagar fogos, no gesto hipócrita de quem “oferece a outra face”... Mas o óbvio, não pode fazer esquecer o essencial, senão (desculpem-me o acentuado pendor para a “paleologia”) corremos o risco de fazer figura de pateta e “fixar o dedo, em vez de olhar a lua...” E a verdade é que a “lua” nos mostra a densidade do reaccionarismo do Papa actual...

Tenho por adquirido que, na celebrada conferência na Universidade alemã, o Papa não estava preocupado, especialmente, com a religião muçulmana. Ou qualquer outra religião. Pelo contrário, visava outros alvos, bem mais terrenos. Ou sejam, o racionalismo e a modernidade científica, que apesar dos argumentos justificativos de não pretender “atrasar o relógio até antes do Iluminismo”, ou “rejeitar as concepções da era moderna”, são o cerne do seu magistério.

Que diz o Papa nesta matéria? Atentemos no discurso : “o ethos científico, acima de tudo, está na vontade de obedecer à verdade e, enquanto tal, corporiza uma atitude que reflecte um dos postulados do cristianismo...” Desde que, naturalmente, a razão seja fecundada pela fé, de cuja fórmula a Santa Madre Igreja é exclusiva detentora. Na santa obediência dos fiéis...

Assim, de uma penada, vemos rasgados dos (laicos) compêndios a “autonomia da razão” e o “livre pensamento”, como fundamento da modernidade. A razão será boa coisa, enquanto “postulado básico do cristianismo”, não pelas consequências da livre aventura do pensamento humano.

Nada de estranho, vindo de quem vem. Não é o mesmo Papa quem, perante os horrores de Auschwitz declara que o Holocausto era especialmente condenável porque os judeus estavam na “fonte do cristianismo”?!... Não pelo inominável crime contra a humanidade, mas porque os judeus (ignorando os restantes) foram “fonte do cristianismo”. Assim, agora, a “razão”, enquanto “postulado básico” do cristianismo.

Querem maior fundamentalismo? Fora do “ethos” do cristianismo, de que o Papa é intérprete, não haverá, portanto, lugar para a razão humana e o sentido da história. Sejam quais forem os actores ou fundamentos: muçulmanos ou judeus. Ou meros agentes do “cientismo moderno”, que o Papa abjura ...

16 comentários:

M. disse...

Texto fabuloso!

Diafragma disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Diafragma disse...

Pois cá vim eu mais uma vez alimentar a minha indignação com a tua ajuda! A dois torna-se mais fácil e pelos vistos já somos quatro.
Como é óbvio também senti o mesmo mas é sempre bom ver que alguém partilha da nossa opinião.
Muito curiosa a observação do Aziluthh. Eu sei que nós somos sempre condicionados pelo ditado "quem vê caras não vê corações", mas por acaso eu sinto exactamente o mesmo. É que não há comparação da expressão facial deste com a do Papa anterior, e para quem gosta tanto da semiologia estas coisas não são despiciendas...

ps: fui eu que apaguei o comment anterior, tinha "gatos".

Peter disse...

Focas o cerne da questão:

"Tenho por adquirido que, na celebrada conferência na Universidade alemã, o Papa não estava preocupado, especialmente, com a religião muçulmana. Ou qualquer outra religião. Pelo contrário, visava outros alvos, bem mais terrenos. Ou sejam, o racionalismo e a modernidade científica, que apesar dos argumentos justificativos de não pretender “atrasar o relógio até antes do Iluminismo”, ou “rejeitar as concepções da era moderna”, são o cerne do seu magistério."

vida de vidro disse...

xgzjcsExiste neste papa uma estranha "racionalidade", no sentido em que esta palavra se pode opor às virtudes cristãs que se radicam em sentimentos de profunda humanidade. Um papa político, talvez. Mas, sobretudo, como muito bem salientas, um papa do mais retrógrado conservadorismo.
Não me parece que seja o que a humanidade (cristã ou não) necessita neste momento.
O teu artigo (quase me recuso a chamar-lhe post) está extraordinário. Mas isso já não é novidade... :)**

vida de vidro disse...

Esquece lá as letrinhas do princípio, devo ter osto o cursor no sítio erado quando fiz a "word verification" :))

Dafne disse...

Olá, pois eu hoje vou ser "Pão, pão. Queijo, queijo):Pois eu não vou com a cara deste papa, não gosto das coisas que ele diz e à conta do que disse (que não foi nada inocente...), uma freira foi morta em África (Etiópia ou Somália) por fanáticos muçulmanos.
E não falo mais porque este papa não me inspira mais palavras.
Um abraço amigo.

Paulo disse...

«quando a secura queima os corações,/
quando a fome sacode as entranhas,/
quando se entra coberto de lágrimas,/
Quando se amordaçam muitos sonhos,/
É como quando se junta lenha sobre o braseiro,/
E no fim basta a ponta da vara de um "escravo"/
Para fazer no céu de Deus/
E no corações dos homens/
O maior dos incêndios»
(Moulod Mammeri)

PS: Obrigado pela visita e parabéns pela oportunidade deste post...A "guerra" vai continuar com Sua Santidade debaixo de fogo cerrado.

Abraço

JPD disse...

Começo por fazer a distinção de dois planos.
Primeiro: discutir a razão e a fé, tem sido repetido no Ocidente e é público e notório.
A Oriente não se conhece essa prática e tanto quanto se sabe a preparação dos iniciados na doutyrian e nos dogmas do Corão ou não aconte, ou não é duvulgado ou é escamoteado.
O esforço que a igreja católica faz para discutir a razão e a fé não me parece ser levado às últimas consequências, pois a ostentação e o poder que imana da Curia -- numa lógica de poder indiscutível -- aceitará a razão se a fé for sempre salvaguradada, i e, se os dogmas forem preservados.
Segundo plano: nunca houve qualquer inocência na preparação e leitura do texto papal na faculdade na Baviera.
Estou mesmo em crer que o risco terá sido calculado.
A posição pontifical, a origem teutónica de Ratzinger são mais do que suficientes para, no fundo, bem lá no fundo, escarnecerem da «Rua islâmica» e da exaltação fundamentalista.
o que para mim é preocupante é o facto de poder chegar-se ao ponto de não dizer ou escrever livremente por temor de reações fundamentalistas e das sequelas inerentes.
Gostei do post
Um abraço

Afrodite disse...

Assisti à sua eleição, fui entrevistada por uma tv inglesa.
"Que pensa de Ratzinger?"
"Quem? Dog's rotweiler?"

Como diz aziluthh, "Nada respira bondade e piedade naquele rosto".

§(~_~)§ beijo da Afrodite
(uma carinha d'anjo num corpo espectacular, com tudo no sítio, muito dentro do prazo, sem aditivos nem silicones)

Afrodite disse...

já lá 'tá!
'bigada

§(~_~)§ beijo da Afrodite
(uma carinha d'anjo num corpo espectacular, com tudo no sítio, muito dentro do prazo, sem aditivos nem silicones)

disse...

O “mestre-escola”, perdão, o faustoso chefe da Igreja católica, não atina com o seu papel na sociedade que o elegeu.

Ant disse...

O papa não é o intérprete do cristianismo, mas de um cristianismo. Meteu a pata na poça? Ok, talvez. Mas que raio, nem o cristo teria pachorra para a provocação dos outros rapazes que também andam meio desajustados. Digo eu... claro.

Lord of Erewhon disse...

Este Papa é tão politicamente idiota quanto o anterior... só que bastante mais belicista.
Abraço.

Anónimo disse...

:-) Deixo-te o link que conheces mas que por certo perdeste.
Um beijo
T
http://bloguecartas.blogspot.com/

damularussa disse...

Comecei bem a manhã.Li, li, li e...
aqui tambem não há gagos.

:-)

Abraço

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