quinta-feira, abril 25, 2024

ESCULTOR O TEMPO


Escultor de paisagens o tempo.

E estes rostos, onde me revejo.

E as mãos, arados.

E os punhos. Em luta erguidos…

 Sons de fábricas que morrem

Perdidas na voragem dos dias

Infecundos. E do lucro

Sem fronteiras.

 E, no entanto, esta torrente. E esta fonte

Que desce em cascata de palavras

Verbo que se faz carne. E ferve

No peito a latejar

Rubros cravos

E bandeiras.

 Nada é definitivo quando a rocha

Se abre ao fogo./Nem a Revolução um feito

Inacabado. Antes um horizonte aberto

A oferecer-se em cada tempo

Sonho sempre novo

Em cada gesto

Logrado

 Poema sinfónico

A arder por dentro. Passo a passo

Numa cadência sem idade.

 E este aguilhão e este alvoroço

E o rosto magoado deste Povo

A inscrever um tempo novo

Letra a letra

Liberdade.

 

25 de Abril, SEMPRE 


Manuel Veiga

sexta-feira, abril 19, 2024

Para Um Novo Teorema da Fisica Moderna

 

dizem expeditos cientistas que o leve bater

das asas de uma borboleta à distância

de milhares de quilómetros pode causar

uma catástrofe num ponto indeterminado…

esse poder a borboleta desconhece,

 que solta belíssimos voos

enquanto aqui e a ali, vai beijando umas flores

no seu jardim predileto – sem outro dano

ou propósito….

 

assim o poeta ele fosse – poder soltar os seus versos

e o adejar de seus mistérios e a milhares de quilómetros

pudesse agitar a beleza das palavras e com elas

fundir.se na consumação dos tempos como se fora

um novo teorema da física moderna…

 

Manuel Veiga

 

quarta-feira, abril 03, 2024

Orquestração de Hinos

 

Polpa dos lábios.

E a interdita palavra

Freme…

E se acolhe

Em fervor mudo

E sílaba-a-sílaba

Se inaugura…

Percurso

De euforias.

Plenas  

Já não lábios

Harmonia de salivas

A urdir por dentro

A tempestade

Dos corpos …

E a dulcíssima

Orquestração

Dos hinos…

 

Manuel Veiga


quarta-feira, março 20, 2024

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO


 

Ao centro a mesa alva

sonho de linho distendido como altar

ou cobertura imaculada sobre a pedra

e a refeição parca…

e copo como cálice

de mão em mão servido

e as gargantas ávidas

e o pão e a água

repartidos…

 

celebração do trabalho e

cerimónia mítica

e o suor dos corpos

como Hino…

 

Manuel Veiga

sábado, março 16, 2024

Sem Pena ou Magoa


 

Lonjuras e murmúrios de água

E o cântico que se escoa pelo vale

E se prolonga no eco evanescente…  

 

Vens assim inesperada melodia

Cascata de sorrisos

E meus olhos

Encantamento …

 

Apenas tu e a paisagem

E a vida a fluir como um rio

Sem pena

Ou mágoa

 

E a orgia da cor

A bailar em cada gesto

De colher-te

Vida em flor…

 

Manuel Veiga

 

 

quarta-feira, fevereiro 28, 2024

TECER HARMONIAS



Visto-te de palavras. Dúcteis.

Que derramadas sobre a pele

Se incendeiam…

E os lábios madura polpa

A derreterm-se na boca e na língua 

Balsâmicas salivas

A fervilharem

Eufóricas pelo

Corpo…

E a tecerem harmonias

E murmúrios

Na dança

Das bocas…


Manuel Veiga


quarta-feira, fevereiro 14, 2024

Tempo Breve


Desalinhada flor assaz perdida

Em busca das cores que melhor a digam

E em demiúrgica ousadia

O poeta a soletrar a tela

E a derramar-se

Em avidez lume

E a colorir de azul

O colapso das formas

E a inaugurar as pétalas

Ora perfumadas

E luz perene.

E o cântico dos cânticos

E a murmurar urgências

E a recolher ecos

De um tempo

Breve …

 

Manuel Veiga

 

 

sexta-feira, fevereiro 02, 2024

A Carta Que Nunca Te Escreverei - FINAL

Manuel Maria e a Cléo mantiveram durante anos uma relação amorosa livre e solta, liberta compromissos e de lugares comuns. A Cléo, vivia a maior parte do tempo, em França, onde como se sabe tinha uma forte ligação ao cinema. Por seu turno, Manuel Maria havia entretanto, vendido alguns propriedades, em terras do Demo que lhe caíram na herança de Frederico Amásio e lhe permitiram organizar o seu atelier de arquitetura e comprar uma agradável vivenda na linha do Estoril, onde passou a residir com a mãe, a crepitosa Violante, depois de Camillinha ter professado no Convento das Carmelitas, o  espaço residente da Santa Irmã Lúcia. Desta forma, ao longo dos anos,  Manuel Maria e a Cléo, quando sentiam desejo mais intenso um do outro, metiam-se no avião e ei-los Em Paris ou em Lisboa, revivendo a sua mútua paixão, como se fosse a primeira vez, sem cansaços nem rotinas, depois quando a necessidade mútua de afeto os acicatava, regressavam aos braços um do outro, como eternos namorado

Etretanto, no país as coisas iam andando, cada vez mais às arrecuas. O País conservador ganhou as eleições, os militares entregaram o poder aos políeos e regressaram aos quartéis, os capitalistas que abandonaram País e o deixaram descapitalizado, foram chamados de novo  e  foram-lhe entregues as empresas e  foram-lhe entregues os bancos que haviam nacionalizados, o centrãoso político  ganhava as eleições “agora viras tu, logo viro eu “,  e o “Portugal na CEE” e a EuropaConnosco “, e o  Pelotão da Frente” e a “fava que nos calha” e seus longos mandatos e os partidos do centrão a alternar continuamente e os milhões da Europa, entregues sempre aos mesmos e “as autoestradas a correr e os meninos aprender”  e o “chico espertismo” e a corrupção e o fartar vilanagem e a União Europeia e cimeira de Lisboa, -“porreiro, pá!”, e a criação do euro e o encerrar do ciclo e Portugal na União Europeia e os países ricos do norte a mandarem nos  países calaceiros do sul e a bancarrota e a crise económica e apertar do cinto e os pobres, cada vez mais pobres e os ricos,  cada vez mais ricos e o Tempo esgotar -se num ai que não volta para trás!a 

E no escoar deste tempo Flávia nasceu, cresceu e fez-se mulher e exímia pianista, com umas longas mãos, longas femininas mãos. elegantes e dedos finos, tão longas mãos, como nunca outras assim longas, Manuel Maria vira, que iam do Piano aos Céus, numa   Sinfonia Tchaikovsky ou numa Sonata de Bach.

Num dia primaveril e quente, Manuel Maria convidou Flávia a almoçarem no Guincho. Depois da refeição, Flávia desceu à praia deserta. Manuel Maria uns passos atrás, seguia-a. Flávia soltou os cabelos em cascata, sacudiu a cabeça fulva e rebelde e seguiu pela areia, acentuado o donaire. A maresia inundava as narinas, O sol, ainda quente, queimava os poros. Uns passos atrás Manuel Maria seguia-a, sempre. Dominando o impulso. Serenando o sangue. Tecendo caprichos no bambolear das ancas da rapariga.

-“Gstava de te saber nua!..” - disse, num murmúrio, saído do âmago do desejo.E, sem nada o fazer prever,, Flávia deixou cair as sandálias, soltou as  alças e a nudez soberba de seu corpo explodiu na serenidade plena da tarde. Um homem perplexo, uma mulher nua e a paisagem, apenas. Sem outra glória, nem crime. Apenas o crepitar do momento único. Passos adiante, oculta por uma rocha milenar, estendida no acolchoado de areia fina, ali estava Flávia, expectante, em sua impudicícia.

 “Ofereço-te o livro do meu corpo, saberás ler todas as suas letras? “... – exclamou, em convite sorridente.

À distância um realizador feliz, como se Eric Rommer fora, filmava um homem e uma mulher, estendidos na areia, tocando o último beijo do filme.

E o “escrevente”, que é um homem honrado, mas não é de intrigas, pergunta-se “o que faria ali Cléo?”…

 

Manuel Veiga

 

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI

 

Entretanto, Manuel Maria, era mais uma vez chamado a Terras do  Demo. Camilinha ficara viúva, por morte do senhor da Casa Grande. Frederico Amásio, em circunstâncias trágicas, nas quais alguns viam castigo divino e outros consideravam como obra do Demo, sendo, porventura, que ambas as suspeitas teriam razão, pois que a soberba e a maldade do defunto e a sua riqueza material bem mereceriam a atenção dos dois  Senhores do  Universo. Seja como for, não é isso que agora interessa, mas antes assinalar que Manuel Maria, por virtude do funeral, foi constrangido a não poder festejar, como era seu ardente  desejo, a Revolução de 25 de Abril, pois que o Senhor da Casa Grande, reacionário como era, foi atirado às  chamas do Inferno, no exacto dia em que nas ruas de Lisboa eram povoadas de um alvoroço festivo e uma profusão de abraços e cravos vermelhos, que  punham o coração dos homens a baterem em uníssono por um Futuro de Liberdade e de emancipação. Social. Foi o “dia claro e limpo” há tanto tempo almejado, como escreveu uma grande Senhora e grande opoeta de Língua  Portuguesa

Como é natural, na ocasião Manuel Maria sentiu.se frustrado e infeliz por não participar na Revolução “ao vivo”, mas agora olha o assunto com bonomia e afirma, com ironia ,que Senhor da Casa Grande, mesmo depois da morte, não se dispensou de o afrontar e desconsiderar pessoalmente e às suas convicções 

Era, pois, outro clima e a disposição de Manuel Maria nesta segunda viagem, em escassos meses, a Terras do  Demo, por insistência  Camilinha. Era uma viagem rija, feita durante a noite, com centenas quilómetros, num comboio ronceiro ”pouca terrá,  pouca terra”, com poucos rendidos ao cansaço, se insalavam como podiam para obterem  o melhor conforto possível.

Também Manuel Maria  depois de um sono mal dormido sobre um banco de madeira, com o casaco a servir de travesseiro,  abriu a janela para melhor sorver a fragância da manhã e o seu espírito soltou-se, para reviver, os últimos factos ocorridos, com José Augusto a demitir-se de Presidente da Comissão Administrativa de um grande Municipio da Área Metropolitana de Lisboa , com Manuel Maria a argumentar que era de todo injustificada a demissão, tanto mais que fora eleito pela população e não apenas nomeado pelo Governo Provisório e, desta forma, havia uma injustificada quebra de confiança com a população, que via no Presidente o companheiro a quem podiam recorrer na realização das múltiplas tarefas para melhorar as condições de vida, nos seus diversos aspetos, seja o saneamento básico, sejam, a construção de mercados  ou escolas, ou lares da Terceira Idade O seu próprio pojecto de uma “Aquitectura para o Povo  se mão houver uma mão forte que o saiba impor á burocracia da Administração Central, corria o risco de  se afundar.

Também a Cléo utilizou todos os argumentos para evitar a demissão  José Augusto recuar na sua demissão de Presidente da Coma demissãoissão Administrativa, mas as suas palavras tiveram o efeito de o irritar ainda mais , ao apresentar o argumento que ela julgava decisivo, evocando acontecimentos passados, em Paris. que ambos haviam protagonizado, em que ele, José Augusto  foi exemplo  de coragem e de abnegação e tais acontecimento eram manchadas agora pela inesperada e cobarde desta “fuga”, deixando um vazio   insanável Presidência  do Município “ Que é feito daquele homem arrojado, valente e carinhoso que tive então o gosto de conhecer e ajudar  na sua missão revolucionária?”, inquiriu a Cléo com veemência. E José Augusto com o sangue ferver de raiva, mas mantendo a contenção que o caracterizavam respondeu, calmamente “cala-te, menina.! Esse assunto é perigoso e ninguém te autorizou a evocar um assunto que não diz apenas a ti respeito. Aliás é em nome desses valores princípios constantes dessa ação revolucionária em Paris, que me obriga agora a voltar a clandestinidade, que é o que se espera de um revolucionário. Eu não sirvo para ajoelhar perante a burguesia e a ilusão da liberdade capitalista. E apontando a porta acrescentou: “agora saiam por favor! Tenho que resolver alguns assuntos que deixaram de ser da vossa conta.

Ambos saíram do gabinete, tristes e frustrados, na convicção de que jamais a amizade que os unia a José Augusto se quebrar para sempre. Manuel Maria decidiu então que era um momento oportuno e satisfazer a vontade da Camillinha que insistia na necessidade da sua presença em Terras do Demo para resolver alguns problemas decorrentes do  processo inventário sequência na morte do senhor da Casa Grande Frederico Amásio. Deixar Lisboa pôr uns tempo, seria a melhor forma de esquecer José Augusto e a sua inconsequente decisão de passar à clandestinidade para continuar a luta, agora armada, contra o considerava serem os inimigos da pátria e os traidores que não souberam que dar corpo a revolução, colocando ao serviço da classe operária.

Gostaria Manuel Maria de levar consigo a Cléo  para conhecer a Terra que de nascer e duas Mulheres que o amavam como se filho de ambas fosse. A Cléo mostrou-se entusiasmada com a proposta mas evocando razões de contactos com Paris relativo à sua carreira no cinema argumentou não poder dar-lhe essa alegria, mas prometeu que falariam todos os dias ao telefone e ela o poria ao corrente dos acontecimentos político e de tudo o que se passasse digno de menção.

Manuel Maria não tinha a certeza se aquele novo regresso a Casa Grande lhe trazia prazer ou incómodo, pois se, por um lado, gostava de ver as duas Mulheres que o amavam como se filho de ambas fosse e, por outro lado, antecipava aborrecimentos, em que teria que remoer a sua vida passada que lhe traria uma boa dose de sofrimento. Aliás, toda essa trapalhada jurídica decorrente do reconhecimento de paternidade e o subsequente processo de inventario seriam inevitáveis. Havia pois que por boa cara e seguir em frente! Aproveitaria, porém, para pôr as su as leituras em dia e em ordem as suas emoções e, talvez, quem sabe? apesar da recusa inicial se não poderia convencer a Cléo, uma citadina cosmopolita ,a passar uns dias naquele “santuário,” bucólico e carregado de memórias. A Cléo porém, reafirmou a sua impossibilidade, de nesta ocasião, oder viajar, gostaria muito conhecer os locais de infância do seu querido anigo Manuel Maria.  Talvez algum dia… em tempo menos carregado de emoções e acontecimentos. 

Enfim, apesar de tudo, bem poderia Manuel Maria considerar-se satisfeito, pois não só é Cléo telefonar todos os dias como a Camilinha havia já dado sequência a uma série papelada que as conservatórias requeriam e, com tal celeridade, que muitos documentos esperavam apenas assinatura de Manuel Maria para produzir efeitos jurídicos, designadamente entrar na posse da herança. A Camilinha tinha pressa ver este assunto arrumado, pois como, logo à chegada de Manuel Maria, havia dado a conhecer, que era seu desejo abandonar o mundo e fechar-se no convento das Carmelitas ,em Coimbra, onde passará o resto dos seus dias em clausura e rezar pelos seus pecados e os pecados do Mundo, seguindo o exemplo da Santa Irmã Lúcia, mas não partirá sem antes ficar certaa de queos bens que  entram em seu património, por morte do marido, serao entregues à Igreja, depois depois de deduzido o legado que fazia questão de entregar a Violante, sua aia e sua amiga de toda vida e a mãe de sangue de Manuel Maria, filho amava como se seu filho fosse, mas foi por vontade de Deus maldade dos homens que ela nunca pode gerar e, assim, para Manuel Maria, seu adorado afilhado, para ele iriam suas orações e a Graça de Divina e a quota-parte da herança paterna que, como filho, lhe pertence, depois de a paternidade ser reconhecida pelas leis do País.

Andava pois Manuel Maria nesta azáfama de conquistar um nome com vários apelidos , ele que sempre se reconheceu como Manuel Maria nome de batismo, com que foi ungido, quase em segredo virou na vítima pia batismal da Igreja Matriz. Filho ilegítimo de uma criada de servir vir nunca Manuel Maria quis saber de sua paternidade e dos títulos e o senhor Casa Grande que ostentava. Porém virgula filhos rural por sua mãe cuja maternidade era inquestionável e pela sua madrinha a esposa rejeitada de Federica Amásio e, sendo tais factos do domínio Público, não teve dúvidas a Cenatória do Registo Civil em reconher  Manuel Maria como filho do do senhor da Casa Grande, mas o obrigria a usar títulos e nomes, que o seu progenitor exibia E, assim, e se Manuel Maria adotou apenas o apelido Silvestre que adicionou ao seu nome de batismo E em consequência, o nome de Manuel MariaSilvestre passou a vigorar no  registo civil para todos os efeitos legais

Estava, pois, Manuel Maria a procurar ajustar-se ao novo apelido e as consequências que daí decorriam para o seu futuro mais ou menos imediato, quando insistente o telefone toca. Do outro lado da linha, a voz de Cléo dispara: “morreu o José Augusto! … “Manuel Maria ficou sem pinga de sangue e, incrédulo, insistiu com a amiga, em clara clara aflição “O que estás a dizer, Cléo? Morreu quem? O José Augusto, como? Mataram-no?.. Ou estarás a brincar? E a Cléo contou então o que sabia e o que se dizia. E o que corria era que José Augusto depois da sua demissão organizou uma célula clandestina, destinada a continuar, por ação direta, a luta contra capitalismo e os vencedores do 25 de novembro e estaria a preparar uma bomba artesanal no sentido de destruir a sede de uma grande multinacional. Por distração ou azar a verdade é que a bomba rebentou nas mãos de José  Augusto e lhe  esfacelou o rosto e o peito, chegando e hospital já morto. Há quem diga, porém, que pelo contrário foi ele próprio o alvo do atentado por parte d,e alguém ou organização da direita, que buscava vingança pela ação revolucionária de José Augusto. Há ainda que sustente que foi o próprio José Augusto que se suicidou-

Seja como for, o funeral está previsto que  se realize a partir Deus 17 horas.  esclareceu a Cléo que continuou. “sei quanto o apreciavas e da vossa mútua e por isso vim a correa dar-te a dolorosa notícia. Virás, não é verdade? Sim, sem a menor dúvida, estarei no funeral, de preferência contigo!” e. de imdiato combinaram encontrarem-se no cemitério.

E assim aconteceu. A Cléo foi amorosa e esfusiante. Meteu o seu braço  no braço de Manuel Maria assim seguiram o cortejo fúnebre, com a sua linda cabeleira de Cléo a derramar-se no ombro do rapaz!...Logo que lhes foi possível libertarem-se de amigos e conhecidos e das conversas  de ocasião,  abandonaram  o cemitério  e seguiram para o apartamento da Cléo, saciaram a sede de seus corpos, pagãos e puros, celebrando a vida sobre a morte, numa catarse libertadora que os devolveu a sua inocência primordial.

Inesperadamente, rompendo um breve silêncio , a Cléo, debruçando-se sobre o rosto de Manuel Maria e mergulhando nos seus olhos “sei que me amas, mas vamos estar uns tempos sem nos podermos ver – parto amanhã para Paris, onde  me esperam dias de trabalho cansativo na rodagem de um novo filme”.

"Que posso eu fazer, sem a tua camorosa presença? Apenas visitar-te, quando as saudades de avolumarem”… declarou Manuel Maria num sorriso gaiato e resignad…

No dia seguinte, a Cléo partiu para Paris. Levava Flávia no  ventre.

 

Manuel Veiga

Antes dos Nomes

 

Ao princípio, antes dos nomes,

Quando todas as coisas fluíam na inocência do porvir

Acordou, na margem, aos olhos do poeta,

Uma centelha (ou uma lágrima) fulgurante

Que a si própria se ergueu e se ungiu

Como Prodígio. E Mensageira.

 

E então todo o Caos se (des)ordenou.

E todas as cores e todos os sons.

E todas as formas. E todas as fórmulas.

E todos os ritos se abriram.

 

E todos barros...

 

E todas as sarças foram chama a arder na boca

De todas as palavras.

 

Manuel Veiga

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...